Bolo Pé de Moleque ou Bolo Preto

A cultura da transmissão oral se distancia cada vez mais de nossos dias, curiosamente, tão cercados de todo o gênero de comunicação. Com ela, também se perdem os saberes e fazeres que nos transformaram no que somos, isto é, no que nos confere uma identidade. Se temos um mundo acessível a qualquer momento, por outro lado estamos deixando de dialogar com o nosso passado e perdendo o vínculo com as nossas próprias raízes.

Museu do Açúcar e Doce – Bolo Pé de Moleque

No início dos anos dois mil, em um natal que passei em Natal/RN, participei da confecção de um bolo típico de lá, o Bolo Preto, na Praia de Pirangi do Norte, em Parnamirim/RN. Trata-se de uma antiga praia de pescadores, onde eles preservam ainda hoje, o antigo costume de trocar esse bolo com parentes e amigos, na véspera de natal. As receitas são guardadas pelas mulheres das famílias que se esforçam para reproduzi-las como suas mães e avós faziam. O evento reúne várias gerações de mulheres da família que se revezam nas tarefas para a produção do bolo. As medidas dos ingredientes são sempre de “olho” e no “tato”. É vendo e sentindo a massa com as mãos que essas mulheres se mantêm fiéis guardiãs de suas origens, alheias aos inúmeros apelos comerciais de uma grande variedade de panetones que invadem suas casas, nessa época.

A produção do Bolo Preto ou Bolo pé-de-moleque, como também é chamado no Nordeste, começa muito antes do natal com a chegada dos primeiros cajus que vão cedendo suas castanhas. Daí, as castanhas vão sendo depositadas, pouco a pouco, em um balaio ou cesto até que este esteja bem cheio. Dois ou três dias antes da confecção do bolo, acontece a torra das castanhas, numa fogueira, até que fiquem com as cascas bem pretas. Depois, são puxadas para fora das brasas com um “ciscador”. Só depois de frias, serão, cuidadosamente, descascadas. Colocadas sobre uma pedra, cada castanha é fortemente batida com outra pedra, até se partir e soltar sua amêndoa que ainda deverá ser “despelada” antes da utilização.

Depois, vem a torra do cravo com a erva-doce numa “tacha”, e, seu aroma incensa toda a casa! Só no momento de usar é que as especiarias serão piladas (no pilão) e peneiradas. Em seguida, é o momento da preparação do mel de rapadura1 que se obtém colocando a rapadura partida em pedaços com água numa panela que é levada ao fogo para ferver até o ponto de mel. Os cocos secos já foram retirados dos coqueiros (abundantes no quintal) e bem limpos, agora serão partidos e raspados no “rapa-coco” para terem seu leite grosso extraído.

Então, uma grande quantidade de massa puba ou carimã, que tanto pode ser fresca ou seca, é despejada numa bacia. A ela, junta-se o mel de rapadura, o leite de coco, as especiarias, as castanhas moídas, a manteiga ou margarina, sempre “vendo” o ponto para “sentir” as quantidades. Pode acrescentar ovos ou não. Essa opção pode variar de acordo com o tempo do galinheiro. A farinha de pau, acrescentada no final, deixa a massa firme que dá para moldar os bolos com as mãos. Depois de moldados são decorados com as castanhas inteiras. A lenha do forno2 deve estar crepitante. Nesse momento, são retiradas algumas folhas da bananeira, sempre presentes nos quintais, lava-se e seca-se bem. Elas servirão para embrulhar os bolos que vão assar por cerca de meia hora de cada lado.

Pesquisando o Pé-de-moleque em Portugal encontrei as Alcomonias na região do Alentejo. Segundo o historiador, João Madeira, a ”Alcomonia era, no século XV, um bolo ou doce oblongo de linhaça, cominho e mel”, posteriormente substituídos: o mel pela calda de açúcar ou melaço, o cominho pela canela e a linhaça pelo pinhão e farinha de trigo e depois de assado, cortado em losangos. Pertencia a doçaria pobre. Hoje, muito parecido com o pé-de-moleque que encontramos nos outros estados brasileiros. Como os pés-de-moleque do nordeste, as alcomonias também se encontram esquecidas em Portugal, e apenas um número reduzido de mulheres mais idosas insistem em prepará-las para vendê-las nas feiras alentejanas. Encontrei no livro, Cozinha Alentejana de Alfredo Saramago, a seguinte receita de alcomonia: “Leve um litro de mel ao lume com uma colher de chá de canela. Mexa sempre quando o mel levantar fervura deite um decilitro de água e depois um litro de pinhões torrados. Deixe ferver novamente até levantar outra vez fervura. Retire do lume e tenda, numa tábua, esta massa, com a ajuda de farinha e forme losangos. Não deixe arrefecer os pinhões para que não caiam”.

O bolo preto também é originário de Portugal encontrado, sobretudo na Ilha da Madeira. Considerado uma iguaria dos festejos natalinos lusitanos ou utilizado como bolo de casamento dos noivos camponeses, é composto de mel, melaço, açúcar branco ou amarelo, manteiga, farinha de trigo, ovos, especiarias, frutas secas e ou cristalizadas, café ou chocolate, fermento ou bicarbonato.

Desse modo, podemos identificar uma forte influência do bolo preto português sobre o nosso. A presença do mel ou melaço foi mantida, a farinha de trigo foi substituída pela mandioca puba e a farinha de pau, as especiarias e a manteiga também permaneceram. Ao invés de frutas secas, as castanhas de caju, e, como o fermento ou bicarbonato são ingredientes mais jovens não existiam no período de nossa colonização. Porém, não podemos descartar também a influência da Alcomonia do século XV, como um bolo em sua forma oblonga e a presença do mel de rapadura e de oleaginosa. A influência indígena o embalou para cozer na folha de bananeira.

Receita de pé-de-moleque à moda de Pernambuco recolhida por Gilberto Freyre: “4 ovos, 6 xícaras de massa de mandioca, 1/2kg de açúcar de segunda, 1 xícara de castanhas de caju pisadas, 1 coco, 3 colheres de sopa de manteiga, erva-doce, cravo e sal. Espreme-se a massa, passa-se numa peneira, depois junta-se o leite de coco, tirado com um pouco d’água. Em seguida, os ovos, a manteiga, o açúcar, as castanhas, pisadas, uma colherzinha de sal, e outra de cravo e erva-doce pisadas. Leva-se ao forno numa forma untada e põe-se em cima algumas castanhas de caju inteiras.” Nota de Cascudo: “O açúcar de segunda é, às vezes, substituído por rapadura. Raro, hoje em dia, o cravo-do-reino, mas erva-doce. Com a rapadura o pé se torna, coerentemente da cor do moleque.”

O Bolo pé-de-moleque pode ser classificado como um manuê, “enche-bucho ou engana-fome”, como classificou Cascudo. Sua massa é densa, cozida numa forma achatada para depois ser cortado em pedaços. Geralmente, é comido na merenda para tapear a fome.

Lucia Soares

 

COMO É FEITO O BOLO PÉ DE MOLEQUE

 

 

 

 

 

 

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1 Que deve ser do engenho de Japecanga – remanescente da atividade açucareira do RN.

2 Equipamento rústico, comumente, preservado no quintal das casas.