Por onde andam as nossas Mães-Bentas?

Apontamentos para o estudo de um doce esquecido pelo Brasil

por Lucia Soares

Forminha papel plissado Museu do Açúcar e Doce
Forminha papel plissado Museu do Açúcar e Doce

Até a minha infância, ainda se ouvia falar muito de mãe-benta. Receita comum nos cadernos de receitas de nossas mães e avós. Lembro delas em algumas ocasiões, sempre como bolinhos dourados, assados em forminhas de papel plissado, onde o coco reinava soberano em seu aroma e sabor. Quando casei, em 1979, como era costume na época, ganhei de presente de minha mãe o livro Dona Benta, 56ª edição, de 1978. Nele, as mães-bentas marcavam presença com três opções de receitas. Inclusive, eu achava curioso a necessidade de três receitas, se uma era apontada como “receita ótima”.

Naquela época, ainda não fazia ideia do que o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre, alertava desde 1926. Monteiro Lobato e seus colaboradores se surpreenderiam com a 76ª edição de Dona Benta revista e ampliada em 2004, por Luiz Cintra, com a supressão de patrimônios culturais importantíssimos, como os tais bolinhos…

Ao que tudo indica, as mães-bentas surgiram no Mosteiro de Santa Clara, pelas mãos das clarissas de Coimbra, convento que teve sua (re)fundação e uma maior valorização histórica a partir do século XIII, com a contribuição da Rainha D. Isabeli. A pesquisa de Dina de Sousa apresenta uma classificação dos doces conventuais em que as mães-bentas aparecem na coluna de Bolos Finos.

Não consegui encontrar registros de mães-bentas mais antigos na literatura brasileira que consultei. O mais distante a que tive acesso foi do livro Francisco de Queirozii, de 1879, (Figura 1) também classificado como bolo, mas já sugere a distribuição da massa por forminhas forradas com papel plissado à mão ou com folhas de bananeira, como o autor confessa preferir.

figura-1 - Museu do Açúcar e Doce figura-1.1 - Museu do Açúcar e Doce

Figura 1

O segundo registro foi do livro de Antônio José de Souza Regoiii, de 1892 (Figura 2) em que a carimã é utilizada como substituto da farinha de arroz. Aparece grafado como “Mãi Benta”, e conta com o acréscimo de canela e água de flor de laranjeira, ao invés do cognac da receita anterior.

Museu do Açúcar e Doce

Figura 2

No terceiro registro, um livro de 1895iv, sem autoria especificada, também se apresenta como “mãi Benta” da mesma forma que o anterior. Porém, deve ser produzido com farinha de trigo. A receita troca as medidas de gramas por libras e retoma a palavra “bolo” só que agora atribuído à Mãe Benta (Figura 3).

Museu do Açúcar e Doce

Figura 3

Luiz da Câmara Cascudo afirma que o consumo de mães-bentas no Rio de janeiro, estava consolidado desde as primeiras décadas do séc. XIX. Por lá, a goma de tapioca também substituiu a farinha-do-reino (de trigo) nas receitas de doces e bolos vindos de Portugal. A semelhança do resultado do produto final nacional com o original determinou uma aceitação tamanha que o Ministro da Marinha d’El-Rei (Príncipe Regente D. João VI), João Rodrigues de Sá e Menezes, avesso aos ingredientes brasileiros, chegou a vomitar quando soube que as mães-bentas que devorava aos pratos, eram feitas com a detestável mandiocav.

Alguns escritores do séc. XIX, também registraram a presença das mães-bentas em seus romances. Em O tronco do Ipê, livro de 1871, por exemplo, José de Alencar se refere às mães-bentas que na trama é apresentada como uma iguaria do Natal de uma família abastada: “[…] e pretas da cozinha occupadas em diversos misteres, como arear as caixas de manuês, bater pao de ló, ralar gengibre e cidra para os pasteis, e cortar as folhas de banana para as mãe-bentas.”vi Como podemos observar, as mães-bentas que o escritor conhecia também era assadas em folha de bananeira. Como era cearense e também viveu na Bahia, estudou direito em São Paulo e morou no Rio de Janeiro, fica difícil precisar a localização de suas memórias, uma vez que nessas regiões alguns doces utilizam a folha de bananeira como embalagem. Talvez até seja mesmo uma experiência do Vale do Paraíba.

O livro póstumo, Ao entardecer, do Visconde de Taunay, editado em 1901, retrata, no capítulo VI: A Ciganinha, a venda na rua de “cocada, mãe benta, manaoé ou pé de moleque” pela personagem ciganinha.vii Carioca e residente no Rio de Janeiro, Taunay nos confirma a presença desses doces entre as quitandas cariocas dos tabuleiros de rua.

O romance de João Silvério Trevisan, “Ana em Veneza” que retrata o Rio de janeiro, entre 1858 e 1891, descreve a cena de um jantar, em Paraty/RJ, que conta com a presença do ilustre convidado, o imperador D. Pedro II, em que foram servidos: “compotas de frutas, baba de moça, manuê de bacia, chuvisco, bolinho de massapão, broa de mãe benta, etc.”viii Nesse caso, o que chama a atenção é que no litoral carioca, a mãe-benta assume a referência de “broa”, doce comum na região no Vale do Paraíba como a broa de pau-a-pique ou joão-deitado, broas produzidas com fubá de milho, oblongas, embaladas em folha de bananeira.

Alguns livros de receita da primeira metade do séc. XX, ainda traziam receitas de mãe-benta. É o caso de A Ciência do lar Moderno, de D. Eulália Vaz, senhora da sociedade paulista que exerceu a função de professora da Escola Profissional de São Paulo, cujo livro em 1912, já estava em sua 4ª edição, (Figura 4).ix Chama a atenção na receita de D. Eulália, a presença do pó de arroz, em que a palavra “pó” equivale à um superlativo para enfatizar a qualidade da granulação da farinha de arroz. A manteiga denominada Demagny, produto francês que a Companhia Brasileira de Laticínios adquiriu a marca no Brasil, de acordo com referência de O Almanak Laemmert, de 1929. Na água de flor também se identifica um ingrediente nobre e importado. Portanto, trata-se de um produto destinado às classes mais abastadas. Essa receita reflete a opulência das receitas praticadas nas residências dos barões de café paulistas, ao menos, em dia de recepção e festa.

Museu do Açúcar e Doce

Figura 4

Umas das mais importantes autoras de culinária de São Paulo da primeira metade do séc. XX, Maria Thereza de Abreu Costa, que também foi professora da disciplina, Arte Culinária na Escola Normal, entre 1911 e 1917, disponibilizou em seu livro, Noções de Arte Culináriax, a receita transcrita abaixo:

  • MÃE BENTA

300g de farinha de arroz

300g de açúcar

300g de manteiga

Um coco ralado e dividido em três partes: duas para extrair o leite sem água e a outra para juntar à massa;

Seis ovos, sendo três com claras.

Batem-se bem primeiramente os ovos inteiros com açúcar,

Juntam-se em seguida a manteiga, a farinha, o leite, e, por último, as gemas bem batidas e o coco continuando a bater até a massa rebentar olhos. Assam-se em forminhas forradas com papel. Forno regular.

O que mais chama a atenção na receita de Maria Thereza é o zelo na descrição das etapas dos processos que devem ser executados pela dona de casa, para garantir o sucesso do resultado. Apesar de sua origem rica, os livros da autora, em comparação à D. Eulália Vaz, refletem as dificuldades de um país sacudido por duas grandes guerras e o choque da quebra da bolsa de 1929.

No Rio de Janeiro, Rosa Maria, codinome de Marieta de Oliveira Leonardos, uma senhora da sociedade, escreveu a Arte de Comer Bem, de 1931. xi O livro que mereceu destaque entre a alta sociedade brasileira, também disponibiliza duas receitas de Mãe Benta:

  • MÃE BENTA COMUM

250g de fubá de arroz, 250g de manteiga, 250g de assucar, ½ coco ralado, 6 ovos, as claras em neve e herva doce q.b.

Bata exageradamente a manteiga com o açúcar, depois junte as gemas, as claras em neve, bata ainda, incorpore o resto e leve a assar em forminhas forradas com rodelas de folhas de bananeira passadas no forno ou no fogo. Também pode assar em uma forma grande untada.

  • MÃE BENTA ESPECIAL

450g de fubá de arroz, 336g de manteiga, 450g de assucar, leite de um coco, 18 gemas e 3 claras em neve. Faça como a Mãe Benta Comum, mas leve a assar em caixinhas com papel frisado.

As receitas de Rosa Maria trazem a palavra “fubá” para classificar a farinha de arroz, termo originário do quimbundo o que pode denotar o avanço da influência africana no vocabulário da cozinha brasileira. Outro fato que chama a atenção é o número de gemas triplicado na segunda receita, enquanto, em relação à primeira receita, os demais ingredientes apenas se aproximam do dobro ou até foram reduzidos, tratando-se de uma nova receita proposta pela autora para as mães-bentas. Na apresentação, a primeira receita parece mais rústica com a solicitação de rodelas de folha de bananeira para forrar a forma, enquanto a segunda sugere a delicadeza das caixinhas com papel frisado.

Cascudo conta, em História da Alimentação no Brasil, que os criados dos vice-reis traziam de Lisboa, doces prestigiados pela preferência da corte. No entanto, muitos desses doces foram contagiados pela adição de nosso polvilho de mandioca, goma, leite de coco, etc. levando o doce fidalgo a percorrer as “mesas burguesas, familiar e fácil” e a perder sua característica original. Segundo ele: “Essas gulodices dos conventos nobres, enviadas em placas de charão para o Paço Real e aos fidalgos protetor, democratizavam-se no Brasil, aceitando a coexistência normal com a doçaria exposta nos tabuleiros humildes, na venda ambulante nas noites iluminadas de festa religiosa, ao lado dos manuês, das cocadas e das mães-bentas.”xii

Cascudo também sugere um modo de fazer Mãe-Benta com goma de mandioca, mandioca ou farinha de trigo peneiradas, acrescida de sal. As claras são batidas como para suspiro acrescidas de gemas e adicionadas de bastante açúcar, branco ou moreno, em que se junta uma das farinhas bem misturada para resultar numa massa espessa. Finaliza com um copo de leite de coco e vai assar em forno quente em forminhas untadas com manteiga até a consistência de broa. Serve para acompanhar o café, no café da manhã ou na ceia e, se for para o lanche pode ser coberto com açúcar cristalizado.

Entre as variedades de mãe-benta, Cascudo aponta a existência dos bolinhos com “farinha de milho. Unicamente de farinha do reino. Pingando-se limão. Pulverizando-se canela. Com erva-doce na hora de levar ao forno.”

Quanto à registros de sua permanência e composição utilizada no país, Cascudo afirma que a mãe-benta: “Era conhecida no alto sertão do Nordeste em finais do século XVIII, comprovando sua vulgarização por todo o Brasil. Em Portugal usam do fubá de arroz forma que consta de receitas brasileiras de 1830. Os tipos “nacionais” contêm, naturalmente, maior porcentagem de elementos locais.”xiii

De fato, Gilberto Freyre descrevendo os doces de tabuleiro do Nordeste, refere-se às célebres mães-bentas que eram vendidas nas ruas até aquela ocasião, produzidas no quilombo de Garanhuns, daí referir-se aos bolinhos como “as broas das negras do Castainho”. xiv

Mas o acontecimento mais famoso envolvendo mães-bentas, certamente, é o caso da amizade do Ministro da Regência, Padre Diogo Feijó com o cônego Geraldo Leite Bastos, cuja mãe, Dona Benta Maria da Conceição, exímia doceira que era, preparava o bolinho que o Padre Diogo tanto gostava. Os bolinhos de Dona Benta concorriam com os das madres do Convento da Ajuda. Os bolinhos foram imortalizados na canção que sugere um produto para pessoas de mais posses: “Mãe Benta, me fia um bolo? Não posso, senhor tenente. Os bolos são de Iaiá, não se fiam a toda a gente.”xv

Fundado em meados do século XVIII, no centro do Rio de Janeiro, o Convento da Ajuda abrigava freiras confeiteiras, especialistas na confecção de doces como baba de moça, bom-bocado, suspiro, cocada, pastéis de Santa Clara, além de uma variedade de compostas de frutas. De todos, as mães-bentas eram os mais famosos. Os doces do convento abasteciam as festas de batizado, casamento das famílias ricas do Rio. Atribui-se a receita de mãe-benta publicada no livro Dicionário do doceiro brasileiro ao Convento da Ajuda.

Não é difícil supor o que aconteceu. Gilberto Freyre com seu Manifesto Regionalista já alertava, há quase cem anos atrás: “Raras são hoje, as casas do Nordeste onde ainda se encontrem mesa e sobremesa ortodoxamente regionais: forno e fogão onde se cozinhem os quitutes tradicionais à boa moda antiga. O doce de lata domina. A conserva impera. O pastel afrancesado reina.”xvi Se comer é um ato político, e a escolha do que vamos consumir gera demanda daqueles produtos, enquanto pode determinar o desaparecimento de outros. Dá para adivinhar o que aconteceu?

iREFERÊNCIAS:

SOUSA, Dina de. “Saberes e Sabores: Memórias da Doçaria Conventual de Coimbra”. Projeto Diaita, 2013.

ii QUEIROZ, Francisco de. 0 Confeiteiro Popular. Rio de janeiro: Editores Gomes & Brandão Co., 1879, pp. 164- 165.

iii REGO, Antônio José de Souza. Dicionário do Doceiro brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria de J.G. Editor, 3ª edição, 1892, p. 390

iv Doceiro Nacional. Paris: Tipographia Garnier Irmãos, 4ª edição, 1895, p. 198

v CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte: ED. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1983, vol.1, p. 269.

vi ALENCAR, José de. O tronco do Ipê. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871, p. 13.

vii TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Ao Entardecer (Contos vários). Rio de Janeiro: Garnier, 1901.

viii TREVISAN. João Silvério. Ana em Veneza. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 4ª edição, 1994, pp.111-112.

ix VAZ, Eulalia. A sciencia no lar moderno. São Paulo: s/ editora, 4ª edição, 1912, p. 41

x COSTA, Maria Thereza A. Noções de Arte Culinária. São Paulo: Off. Gráphicas da Ave Maria, 22ª edição, 1940, p. 210.

xi MARIA, Rosa. A Arte de Comer Bem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 12ª edição, 1941, p. 353.

xii CASCUDO. Luís Câmara.Op. cit., vol. 2, p.658.

xiii Id., p.659.

xiv FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002, p. 506.

xv FIGUEIREDO, Guilherme. Comidas, meu Santo! Rio de janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1964, p. 67-68.

xvi FREIRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 7.ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. p.47-75.