Categoria: Destaque do mês

Museu do Açúcar e Doce (MAD)

O mingau de milho e a reza de Santo Antônio

Nas muitas tradições religiosas populares, há sempre um complemento na culminância desses rituais como, por exemplo, o oferecimento de comidas e/ou bebidas. E cada cardápio vai simbolizar o tipo de celebração, também destacar ingredientes que podem mostrar as possibilidades do meio ambiente, e marcar o terroir.

E as festas dos santos de junho, Antônio, João e Pedro, mostram o milho enquanto ingrediente de maior significado que apenas o nutricional, quando ele será consumido em diferentes preparos, e marcará simbolicamente um dos principais papéis da comida que é o de lugar de pertencimento.

Pode-se dizer, ainda, que comer e beber nesses ambientes de festa e religiosidade revela e aproxima a pessoa do que é sagrado, do que é votivo, pois as alimentações coletivas reforçam os mais profundos laços com um sentimento que podemos entender por identidade.

Trago como exemplo a grande fé popular por Santo Antônio, santo português que acompanhou todo o processo histórico da colonização, e que mostra uma grande presença em todo o Brasil, seja por meio da música, da dança, dos cortejos, das trezenas, dos tríduos; e especialmente das comidas de milho.

Na Bahia, notadamente no Recôncavo, são comuns as rezas de Santo Antônio nas casas, nas igrejas e nos terreiros de candomblé, pois os muitos e diferentes processos do chamado sincretismo religioso afirma uma profunda relação sagrada entre Santo Antônio e o orixá Ogum.
Nessa devoção, há uma proximidade, uma intimidade entre Santo Antônio e o devoto, numa relação de amizade e de profundo afeto, faz-se assim uma fé ampliada.

Ainda no contexto do Recôncavo baiano, é comum servir, após as Rezas, um mugunzá feito com milho branco, e, em especial, um mingau no melhor estilo baiano, mingau quase líquido para ser bebido, sendo um mingau de milho amarelo. E assim se expressa a devoção, porque comer a comida da festa é um importante momento de viver a religiosidade.

 

RAUL LODY

Museu do Açúcar e Doce (MAD)

CAFÉ COM “ZABAGLIONE”

Em 8 de maio de 2025, no cardápio oferecido pelo Vaticano por ocasião da eleição do supremo pontífice aparecem duas sobremesas, tradicionalmente italianas: o café com zabaione e uma torta gelada – semifreddo – com suspiros e creme fresco. Com isso, pela oportunidade histórica e acesso a este cardápio, o MAD oferece aos seus leitores e parceiros um olhar gastronômico sobre o café com zabaione.

Popularmente o zabaione é o que podemos chamar de “um tipo de gemada italiana”, cujo processo culinário básico assemelha-se as nossas receitas tradicionais do Brasil.

Destaco esta escolha sobremesa, que faz parte da composição de um cardápio repleto com tantos significados, por ser tão ligada aos hábitos alimentares na Itália. Certamente a receita do zabaione recebe algumas interpretações regionais na Itália, e outras interpretações autorais daqueles que realizam as receitas.

O zabaione nasce da mistura de gemas de ovos e de açúcar, onde há uma proporção, e esta mistura é muito bem batida até que se forme um creme homogêneo e mais esbranquiçado. É um verdadeiro creme, que nesse caso, é servido com café, acrescenta-se o zabaione no café pronto.

Alguns realizam esta receita do creme sem levar ao fogo; outros realizam o creme num processo de cozimento lento que é popularmente conhecido por “banho-maria”. Ainda, pode-se acrescentar alguns tipos de bebidas alcoólicas, e segundo a tradição italiana, uma das mais comuns é o vinho Marsala, porém se pode adicionar conhaque, outros vinhos fortificados, como, por exemplo, o Sagrantino Passito.

Alguns desses estilos certamente estavam presentes na realização da receita na referida ementa, no cardápio de celebração da eleição de novo Papa. E assim, fica este conjunto de considerações para mostrar que as cozinhas tradicionais, geralmente de bases etnoculturais e populares, são as verdadeiramente fundantes de tantos, de muitos sistemas alimentares; além de trazerem muitos significados, muitos simbolismos, nesse caso para a cozinha italiana, e, sem dúvida, para diáspora da cozinha italiana pelo mundo.

RAUL LODY

O arroz de leche no restaurante mais antigo do mundo El Botin em Madri

O arroz de leche no restaurante mais antigo do mundo El Botin em Madri

O famoso restaurante madrilenho El Botin, fundado em 1725, é considerado o mais antigo do mundo. Ele inicia suas atividades como uma hospedaria, já que à época era proibido a venda de comidas prontas em estabelecimentos públicos. Contudo, neste local hoje histórico, os clientes da hospedaria levavam suas carnes, e outros preparos, para serem assadas nos fornos a lenha da hospedaria.

Esta tradição dos assados, dos fornos artesanais à lenha, permanece como marca fundamental da tradição gastronómica deste lugar que é dedicado especialmente aos assados de suínos. Entre os muitos pratos destaca-se o “cochinillo asado”.

Fiel ao meu ofício, e com o desejo de verificar in loco, fui jantar no restaurante El Botin para poder viver e me emocionar com tanta história gastronómica reunida por séculos de funcionamento ininterrupto neste lugar.

Certamente pedi este prato emblemático e identitário do restaurante, o tão famoso “cochinillo asado”, que foi precedido de entradas deliciosas, como as “morcillas”, e para o grande final, um postre também próprio e emblemático das tradições da doçaria espanhola, diria ibérica, que é o arroz de leite, o nosso tão querido e popular arroz doce.

Este preparo doce, que íntegra a civilização Magrebe no território consagrado e conhecido como El-Andaluz, sul da Península Ibérica, chega como um elemento da herança civilizadora de uma longa ocupação feito pelos povos do norte do continente africano na península ibérica durante a expansão do islã para o ocidente.

Assim, nas nossas tradições da doçaria brasileira nós encontramos muitas e diferentes interpretações de receitas, e modos de preparar, do tão estimado arroz doce, uma sobremesa que é tão integrada ao nosso imaginário da doçaria tradicional e popular.

Bem, retomando o tão apreciado arroz de leche do restaurante El Botin, Trago alguns dos ingredientes desta receita que é feita à base de leite de vaca, arroz, cascas de limão Siciliano e de laranja, pau de canela, sal, e canela para polvilhar o prato antes de servir.

E para melhor ilustrar este texto, sege a “carta de postres” do restaurante El Botin recolhida durante o jantar, para marcar a memória e mostrar o seu acervo de doces tradicionais da Espanha.

RAUL LODY

Doces tâmaras e o Ramadã

Doces tâmaras e o Ramadã

Um dos cinco pilares do islamismo é o Ramadã, período de um mês que é dedicado ao jejum, às orações, às reflexões e ao fortalecimento dos laços sociais e afetivos. E tudo isso é especialmente realizado nas refeições coletivas, logo ao anoitecer, conhecidas como “Iftar”.
Também este período do Ramadã se destaca pela retomada ou continuidade das receitas das cozinhas regionais de cada povo e cultura, faz-se desse modo uma ação de preservação da sabedoria acumulada nas memórias coletivas.

Embora o jejum seja um elemento significativo na identidade do Ramadã, é a comida, o partilhar a comida, fazer com que todos possam comer com qualidade e quantidade dentro dos princípios da ética religiosa do Islã, é o que marca e identifica a ética e a moral dos seguidores do Alcorão.
Também, marca ainda o Ramadã, o oferecimento de comida por aqueles que podem oferecer, que podem doar comida para aqueles que não teriam uma alimentação condizente neste período de forte afirmação dos muitos papéis sociais que identificam a essencialidade de ser muçulmano.

Assim, após o “Magrib”, oração noturna que precede os rituais coletivos da alimentação conhecidos por “Iftar” em que tradicionalmente esta refeição é iniciada comendo-se tâmaras desidratadas. E a partir deste momento são servidos os diferentes pratos que marcam os sistemas alimentares das populações muçulmanas no mundo.

A tâmara é uma fruta muito relacionada ao imaginário dos hábitos alimentares dos muçulmanos, sendo uma fruta provavelmente originária do norte do continente africano, que se espalhou pelo Oriente médio e pelo mundo.

Refiro-me a espécie Phoenix dactylifera, “tamar” em árabe, fruta que integra diferentes receitas e compõe diferentes cardápios. Por exemplo, na Etiópia é tradicional servir a tâmara acompanhando o café; no mundo Magrebe, esta fruta integra as muitas receitas como o cuscuz de sêmola. E ainda ela está presente na doçaria, na confeitaria e na panificação.

 

Raul Lody

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.

Filhós, Malassada, Coscorões

Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.

Momo, filho do sol com a lua, é um mito grego que está no nosso imaginário como aquele que comanda a folia, que se espalha no Ocidente, por meio dos romanos que estão unidas às Saturnálias aos festejos desse gordo e debochado “rei”.

Na Europa, por exemplo, ele é evocado nos rituais do solstício de inverno com bonecos gigantes que são sacrificados nas fogueiras em rituais agrários de renovação, fertilidade e alimentação.

Tudo se remete aos rituais da fertilidade, da colheita, do nascimento, da beleza apolínea, do culto solar; e sempre sob o comando do rei da folia, que quer beber, comer e valorizar tudo aquilo que é sensorial, carnal, porque é Carnaval.

Cabe destacar a cozinha Al-andaluz, que marca a expansão do Islã para o Ocidente. Isto se dá a partir do norte do continente africano, a África mediterrânea, o Magrebe.

A cozinha de matriz afro islâmica está em muitas cozinhas da Europa e, em especial, as dos territórios do Al-andaluz – península Ibérica.

Essas cozinhas que mesclam árabes e berberes, e assim seus preparos culinários, suas escolhas por ingredientes e receitas, formam uma base de identidade culinária que está viva e marcante na mesa brasileira.

As receitas abaixo são especiais do carnaval e, em destaque, os filhoses, que estão presentes no Carnaval de Pernambuco e dos Açores, Portugal.

São comidas sociais, pois presentear com doces é um ato de profundo significado de afetividade e de amizade, como também preparar doces nas casas para serem distribuídos entre os familiares e amigos.

Como é tradicional na cozinha, cada preparo culinário segue uma sequência de rituais, porque a realização da boa receita está muito além do uso dos ingredientes.

O ato imemorial de cozinhar estabelece relações simbólicas e profundas entre cada alimento, seu uso, sua representação e o seu sabor. Isso marca o preparo das massas de farinha de trigo para as receitas dos coscorões, das ‘malassadas’ e dos filhoses.

 

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

 

Filhós com açúcar e canela

Ingredientes: 350g de farinha de trigo; 250g de açúcar; 10g de fermento; 15ml de leite; 50g de manteiga; 1 ovo; sal, açúcar amarelo, canela e azeite a gosto.

Modo de preparo: bata a manteiga com o açúcar e junte com o ovo e o sal. Misture o fermento à farinha de trigo e faça uma massa. Deixe-a levedar; e então, sobre uma superfície, espalhe a farinha para que a massa se abra. Recorte a massa em pedaços e frite em azeite fervente e pulverize com açúcar e canela.

 

Filhoses de aproveitamento de pão

Ingredientes: 500g de abóbora; 500g de pão; 6 ovos; 2 laranjas; 1 cálice de aguardente; açúcar, canela e leite a gosto.

Modo de preparo: em fatias, embeba o pão no leite, fazendo o mesmo com a abóbora. Junte o pão à abóbora e faça uma massa, acrescentando as raspas e o sumo da laranja, a aguardente e os ovos. Leve a massa à fritura em azeite bem quente e pulverize as porções com açúcar e canela.

 

Malassada

Ingredientes: 1k de farinha de trigo; 60g de fermento de padeiro; 3 copos de leite gordo; sumo de uma laranja; raspas de 2 laranjas; mel de cana ou melado de cana a gosto.

Modo de preparo: misture a farinha de trigo com o fermento e a água. Adicione as raspas e o sumo das laranjas, os ovos e o leite e faça uma massa homogênea, e então deixa levedar. Frite as porções em azeite bem quente e, depois de douradas, cubra-as com generosas colheradas de mel de cana.

 

Coscorões

Ingredientes: 125 g de manteiga; 03 ovos; 02 laranjas; 02 xícaras de farinha branca de neve; açúcar e canela a gosto; 1 cálice de aguardente.

Modo de preparo: bata os ovos com o açúcar, o sumo das laranjas, a manteiga e a farinha. A massa deve lembrar a massa do pão, e assim fica até levedar. Recorte e frite no azeite quente. Polvilhe com açúcar e canela.

Sem dúvida, comer é uma festa, e tudo que se oferece no ritual coletivo é especial e está repleto de significados, porque é preciso comer a festa.

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

RAUL LODY

 

 

Biscoitos do Nordeste: bons de ver e bons de comer

Sem dúvida, para a confeitaria e a panificação a categoria biscoito torna-se um campo plural e diverso que apresenta inúmeras possibilidades de receitas, de tipos, e certamente de sabores. Isto também irá atestar as possibilidades dos ingredientes conforme cada terroir.

Provavelmente as primeiras massas de biscoito foram produzidas no século XVII, na França, para a fabricação do “biscoito do rei”, embora outras referências tragam informações sobre o amplo ciclo das Grandes Navegações realizadas por Portugal, onde alguns tipos de biscoitos especiais tornavam-se o principal alimento durante estes processos de longas viagens pelos oceanos, que se pode datar no final no século XV.

É importante observar que o biscoito tornou-se um alimento do cotidiano já há muito tempo, normalmente um biscoito doce que está presente em diferentes tipos de refeições, para atender aos mais diferentes desejos, interesses e paladares.

No caso brasileiro, vale destacar que as muitas possibilidades de biscoitos que são oferecidos nas confeitarias, padarias, feiras e mercados populares, possibilitam um acesso às muitas receitas, que ganham com o tempo suas tendências regionais, autorais. E assim suas receitas marcam a identidade de doceiras, de confeiteiros; e de estabelecimentos em que estes produtos são comercializados.

No caso do Nordeste, são inúmeros os biscoitos que seguem as mais tradicionais receitas, e oferecem identidade para esse verdadeiro valor patrimonial na cultura alimentar da região.

Dentre essa tão rica tipologia, quero destacar o tão querido e popular bolachão, que se distingue por ter um formato avantajado, de ser um pouco mais rijo que a maioria dos biscoitos, e de proporcionar grande saciedade.

A partir deste olhar, quero trazer alguns tipos das chamadas bolachas/biscoitos mais consumidas, mais populares no comércio, e que mostram também os diferentes processos de invenção, de reinvenção, e de manutenção de receitas centenárias, que certamente chegaram de além-Atlântico.

Então vamos conhecer os biscoitos de: queijo, alho, manteiga, churrasco; coco seco, cebola roxa, nata, extra fina; passa-raiva, nata-goiaba, charque, Suíça, mata-fome; canela-fofa, sete-capas, integral, sequilho; bolo de goma, mesclado, água e sal, sodinha; meia-lua alho, língua-de-sogra, Maragogi doce, lua-cheia queijo, regalia; praieira, trufado goiaba, trufado chocolate.

Verdadeiramente para conhecer os biscoitos do Nordeste é preciso experimentar, é preciso comer para perceber suas texturas, seus ingredientes, seus aromas, e seus sabores.

E assim, certamente, estas experiências gastronômicas trarão grandes referências para o conhecimento e para o reconhecimento dessas comidas doces, na sua maioria, já tão nacionalizadas, tão abrasileiradas.

 

Raul Lody

Foto Jorge Sabino

Acaçá de leite: Da receita africana à mesa baiana

O acaçá é uma comida feita a partir do milho branco que recebe diferentes interpretações culinárias; sendo também uma das comidas de maior significado religioso para as tradições do candomblé, e de outras tradições que expressam a religiosidade de matriz africana. Neste caso, o acaçá é geralmente chamado de ekó.

A receita tradicional do acaçá para os modelos culinários das culturas da África Ocidental, de onde chega esta comida para o Brasil, dá-se a partir do uso do milho branco demolhado por algumas horas, depois de retirada a água, e passado por um processo de transformação em massa.

Com esta massa faz-se uma espécie de mingau grosso que é depositado em porções, geralmente na quantidade de uma colher de pau comum, em pedaços de folha de bananeira, já passadas pelo fogo para adquirir flexibilidade; aí os acaçás são devidamente embrulhados artesanalmente num formato específico; então eles são colocados numa panela para serem cozidos.

Nesta receita não há nenhum tipo de condimento, nem mesmo o uso do sal, porque este acaçá será um acompanhamento para comidas muito condimentadas como, por exemplo, no caso da cozinha afro-diaspórica, acompanha-se com o caruru de quiabo ou o vatapá, entre outros.

Também, este acaçá ou o ekó, integra-se a cozinha sagrada dos terreiros de candomblé, sendo uma das mais tradicionais comidas de matriz africana. Inicialmente, uma das muitas variações gastronômicas do acaçá é o acaçá doce, onde se acrescenta o açúcar na massa. Há o acaçá de leite que recebe leite de gado vacum ou leite de coco e açúcar.

Ainda, o acaçá de leite integra um cardápio da cozinha baiana chamado de “Ceia Baiana”, onde se serve pamonha de carimã, pamonha de milho, mugunzá, bolos, entre outros.

Sem dúvida, o acaçá é uma das comidas mais marcantes da gastronomia afro-diaspórica.

RAUL LODY

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Texto e foto: Josué Francisco da Silva Júnior

 

O bolinho de pixaim é uma iguaria ainda presente em alguns estados do Nordeste — Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, pelo menos — e que mantém um ar de comida de praia, por conta da sua origem, que se perdeu no tempo, e de um ingrediente marcante na sua composição, o coco. Parece que nasceu no litoral e daí espalhou-se pelo interior. Lembro de comer em Garanhuns, no Agreste, ainda criança, e minha mãe já comprava antes, mas lá tinha o nome de “cocorote”.

Sem dúvida, os bolinhos de pixaim trazem a assinatura primordial africana e até hoje os mais afamados e com modo de fazer peculiar são confeccionados no povoado quilombola de São Lourenço, a histórica vila nascida em torno da antiga igreja de traços simples do século XVI, localizada no município de Goiana, litoral de Pernambuco. Na sua vizinhança, estão a heroica Tejucupapo das mulheres guerreiras e a vila praieira de Carne de Vaca, um dos berços do brinquedo Pretinhas do Congo, também de ascendência africana.

Os ingredientes do saboroso bolinho basicamente consistem de farinha de trigo — variantes usam massa puba ou de mandioca, como antigamente —, coco fresco ralado, açúcar, ovo e uma pitada de sal. A manteiga, pelo preço elevado, tem sido substituída pela margarina e cada pessoa tem um jeito de fazer. Uma ou outra receita usa também água e fermento, mas é incomum. A massa é mexida com as mãos para dar a consistência firme ideal e que não pode ser mole como na maioria dos bolos. Assado em um tabuleiro no forno a lenha — uma unanimidade para o sucesso da receita — resulta na sua crocância por fora e maciez por dentro. É lanche de padaria, de bodega, vendido nas ruas, em barracas e nas feiras.

Esses pixains da foto que ilustra o artigo são da venda de Gilmar, na rua da Matriz, feitos por sua tia, em São Lourenço de Tejucupapo, município de Goiana, Pernambuco.

 

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Um doce que traz maneiras doces de homenagear o tão consagrado estudioso, verdadeiramente um filósofo, fundador dos conceitos que orientam até hoje o entendimento histórico do que é a gastronomia, refiro-me à Brillat-Savarin, autor do clássico “A fisiologia do gosto” (França, 1825). Livro originalmente titulado como “A fisiologia do gosto ou meditações sobre gastronomia transcendental”.

A Savarin são atribuídos os estudos que buscam unir aspectos da fisiologia humana, especialmente referentes aos sentidos, nos contextos dos cenários sociais e culturais da França do século XIX. Assim, este autor privilegia entendimento histórico, e ancestral, da cozinha francesa, numa espécie de sacralização do que podemos chamar de gastronomia francesa, que até hoje é um caso de legitimidade do que é a gastronomia, embora muitos movimentos ampliem estes entendimentos, diria saíram da restrição chamada de franco-centrada.

Savarin traz alguns aforismos clássicos que revelam o seu entendimento, complexo e amplo, sobre o que é comida e cultura, melhor dizendo num entendimento fundacional sobre o que é cultura alimentar, por exemplo: “o destino das nações depende da maneira como elas se alimentam”; e, ainda, “dize-me o que comes e ter direis quem és”.

Há no mercado da gastronomia dois exemplos comestíveis que homenageiam Savarin, são eles um pequeno bolo fundado na receita do clássico babá ao rum, que poderá ter cobertura de chantili ou culminado com macedônia de frutas frescas; o outro exemplo gastronômico é queijo Savarin, queijo feito à base de leite de gado vacum e acréscimos de natas.

Estas homenagens profundamente integradas ao objeto de interesse de estudo de Savarin, que é viver o sentido, e o sentimento, do paladar integrado aos demais sentidos, para assim experimentar de maneira plena, diria existencial, os prazeres do paladar, totalmente desvinculados dos pecados que nascem dos prazeres à boca.

 

 

Raul Lody

Museu do Açúcar e Doce destaque do mês

Farófia, farofa ou para ampliar os entendimentos sobre os sabores

Sem dúvida, um dos processos culinários mais referentes e construtores de identidades alimentares do brasileiro está nas receitas das farofas. Farofas salgadas e doces.

Eu quero aqui, e agora, olhar para os preparos doces, geralmente complementares da panificação e da confeitaria, tendo no açúcar as suas mais diversas interpretações e tendências estéticas, onde há o seu protagonismo e uma referência que constrói receitas e identidades.

Nestes contextos, quero problematizar um preparo muito tradicional do mundo português, que tem a sua ampla e diversa doçaria portuguesa marcada pelo aproveitamento integral dos ingredientes, e que mostra que é antiga e tradicional a sua interpretação de sustentabilidade dentro dos seus hábitos alimentares. E é a partir de um ingrediente icônico, que é o ovo, um ingrediente verdadeiramente dominante, na diversa e rica doçaria portuguesa, nas muitas interpretações de receitas.

Destaque para o aproveitamento das claras, visto que há uma tendência marcante do uso das gemas na sua doçaria. Trago como exemplo notável a receita da farófia, cuja base são as claras de ovos batidas em neve, em castelo; além de açúcar e leite, e outros ingredientes que irão variar conforme as muitas assinaturas autorais.

Nas minhas etnografias em Portugal, perguntei por que o nome farófia, e as respostas foram imediatas e consensuais, é porque o doce é fofo. Assim, com esta indicação tão fundamental fiquei a questionar, porque é sempre muito bom questionar, ou relativizar certezas, de que a nossa tão consagrada farofa, nas suas versões mais tradicionais e comuns, a partir da farinha de mandioca, é também, sem dúvida, uma comida fofa.

Bem, fica então esta constatação da pesquisa de campo, insubstituível, fundamental, porque acompanha e retrata as mais profundas relações sociais, sempre simbolizados e encharcadas de memória e de identidade; e ainda de sabedoria tradicional.

Então, vamos rever algumas certezas sobre a possível e sempre questionável origem das comidas, no caso da nossa tão celebrada e querida farofa.

 

RAUL LODY