Categoria: Destaque do mês

Foto Jorge Sabino

Acaçá de leite: Da receita africana à mesa baiana

O acaçá é uma comida feita a partir do milho branco que recebe diferentes interpretações culinárias; sendo também uma das comidas de maior significado religioso para as tradições do candomblé, e de outras tradições que expressam a religiosidade de matriz africana. Neste caso, o acaçá é geralmente chamado de ekó.

A receita tradicional do acaçá para os modelos culinários das culturas da África Ocidental, de onde chega esta comida para o Brasil, dá-se a partir do uso do milho branco demolhado por algumas horas, depois de retirada a água, e passado por um processo de transformação em massa.

Com esta massa faz-se uma espécie de mingau grosso que é depositado em porções, geralmente na quantidade de uma colher de pau comum, em pedaços de folha de bananeira, já passadas pelo fogo para adquirir flexibilidade; aí os acaçás são devidamente embrulhados artesanalmente num formato específico; então eles são colocados numa panela para serem cozidos.

Nesta receita não há nenhum tipo de condimento, nem mesmo o uso do sal, porque este acaçá será um acompanhamento para comidas muito condimentadas como, por exemplo, no caso da cozinha afro-diaspórica, acompanha-se com o caruru de quiabo ou o vatapá, entre outros.

Também, este acaçá ou o ekó, integra-se a cozinha sagrada dos terreiros de candomblé, sendo uma das mais tradicionais comidas de matriz africana. Inicialmente, uma das muitas variações gastronômicas do acaçá é o acaçá doce, onde se acrescenta o açúcar na massa. Há o acaçá de leite que recebe leite de gado vacum ou leite de coco e açúcar.

Ainda, o acaçá de leite integra um cardápio da cozinha baiana chamado de “Ceia Baiana”, onde se serve pamonha de carimã, pamonha de milho, mugunzá, bolos, entre outros.

Sem dúvida, o acaçá é uma das comidas mais marcantes da gastronomia afro-diaspórica.

RAUL LODY

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Texto e foto: Josué Francisco da Silva Júnior

 

O bolinho de pixaim é uma iguaria ainda presente em alguns estados do Nordeste — Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, pelo menos — e que mantém um ar de comida de praia, por conta da sua origem, que se perdeu no tempo, e de um ingrediente marcante na sua composição, o coco. Parece que nasceu no litoral e daí espalhou-se pelo interior. Lembro de comer em Garanhuns, no Agreste, ainda criança, e minha mãe já comprava antes, mas lá tinha o nome de “cocorote”.

Sem dúvida, os bolinhos de pixaim trazem a assinatura primordial africana e até hoje os mais afamados e com modo de fazer peculiar são confeccionados no povoado quilombola de São Lourenço, a histórica vila nascida em torno da antiga igreja de traços simples do século XVI, localizada no município de Goiana, litoral de Pernambuco. Na sua vizinhança, estão a heroica Tejucupapo das mulheres guerreiras e a vila praieira de Carne de Vaca, um dos berços do brinquedo Pretinhas do Congo, também de ascendência africana.

Os ingredientes do saboroso bolinho basicamente consistem de farinha de trigo — variantes usam massa puba ou de mandioca, como antigamente —, coco fresco ralado, açúcar, ovo e uma pitada de sal. A manteiga, pelo preço elevado, tem sido substituída pela margarina e cada pessoa tem um jeito de fazer. Uma ou outra receita usa também água e fermento, mas é incomum. A massa é mexida com as mãos para dar a consistência firme ideal e que não pode ser mole como na maioria dos bolos. Assado em um tabuleiro no forno a lenha — uma unanimidade para o sucesso da receita — resulta na sua crocância por fora e maciez por dentro. É lanche de padaria, de bodega, vendido nas ruas, em barracas e nas feiras.

Esses pixains da foto que ilustra o artigo são da venda de Gilmar, na rua da Matriz, feitos por sua tia, em São Lourenço de Tejucupapo, município de Goiana, Pernambuco.

 

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Um doce que traz maneiras doces de homenagear o tão consagrado estudioso, verdadeiramente um filósofo, fundador dos conceitos que orientam até hoje o entendimento histórico do que é a gastronomia, refiro-me à Brillat-Savarin, autor do clássico “A fisiologia do gosto” (França, 1825). Livro originalmente titulado como “A fisiologia do gosto ou meditações sobre gastronomia transcendental”.

A Savarin são atribuídos os estudos que buscam unir aspectos da fisiologia humana, especialmente referentes aos sentidos, nos contextos dos cenários sociais e culturais da França do século XIX. Assim, este autor privilegia entendimento histórico, e ancestral, da cozinha francesa, numa espécie de sacralização do que podemos chamar de gastronomia francesa, que até hoje é um caso de legitimidade do que é a gastronomia, embora muitos movimentos ampliem estes entendimentos, diria saíram da restrição chamada de franco-centrada.

Savarin traz alguns aforismos clássicos que revelam o seu entendimento, complexo e amplo, sobre o que é comida e cultura, melhor dizendo num entendimento fundacional sobre o que é cultura alimentar, por exemplo: “o destino das nações depende da maneira como elas se alimentam”; e, ainda, “dize-me o que comes e ter direis quem és”.

Há no mercado da gastronomia dois exemplos comestíveis que homenageiam Savarin, são eles um pequeno bolo fundado na receita do clássico babá ao rum, que poderá ter cobertura de chantili ou culminado com macedônia de frutas frescas; o outro exemplo gastronômico é queijo Savarin, queijo feito à base de leite de gado vacum e acréscimos de natas.

Estas homenagens profundamente integradas ao objeto de interesse de estudo de Savarin, que é viver o sentido, e o sentimento, do paladar integrado aos demais sentidos, para assim experimentar de maneira plena, diria existencial, os prazeres do paladar, totalmente desvinculados dos pecados que nascem dos prazeres à boca.

 

 

Raul Lody

Museu do Açúcar e Doce destaque do mês

Farófia, farofa ou para ampliar os entendimentos sobre os sabores

Sem dúvida, um dos processos culinários mais referentes e construtores de identidades alimentares do brasileiro está nas receitas das farofas. Farofas salgadas e doces.

Eu quero aqui, e agora, olhar para os preparos doces, geralmente complementares da panificação e da confeitaria, tendo no açúcar as suas mais diversas interpretações e tendências estéticas, onde há o seu protagonismo e uma referência que constrói receitas e identidades.

Nestes contextos, quero problematizar um preparo muito tradicional do mundo português, que tem a sua ampla e diversa doçaria portuguesa marcada pelo aproveitamento integral dos ingredientes, e que mostra que é antiga e tradicional a sua interpretação de sustentabilidade dentro dos seus hábitos alimentares. E é a partir de um ingrediente icônico, que é o ovo, um ingrediente verdadeiramente dominante, na diversa e rica doçaria portuguesa, nas muitas interpretações de receitas.

Destaque para o aproveitamento das claras, visto que há uma tendência marcante do uso das gemas na sua doçaria. Trago como exemplo notável a receita da farófia, cuja base são as claras de ovos batidas em neve, em castelo; além de açúcar e leite, e outros ingredientes que irão variar conforme as muitas assinaturas autorais.

Nas minhas etnografias em Portugal, perguntei por que o nome farófia, e as respostas foram imediatas e consensuais, é porque o doce é fofo. Assim, com esta indicação tão fundamental fiquei a questionar, porque é sempre muito bom questionar, ou relativizar certezas, de que a nossa tão consagrada farofa, nas suas versões mais tradicionais e comuns, a partir da farinha de mandioca, é também, sem dúvida, uma comida fofa.

Bem, fica então esta constatação da pesquisa de campo, insubstituível, fundamental, porque acompanha e retrata as mais profundas relações sociais, sempre simbolizados e encharcadas de memória e de identidade; e ainda de sabedoria tradicional.

Então, vamos rever algumas certezas sobre a possível e sempre questionável origem das comidas, no caso da nossa tão celebrada e querida farofa.

 

RAUL LODY

doce de banana de rodelinha - Museu do Açúcar e Doce

Doce de banana de rodelinha

Se há uma fruta tão nacional e com tantas formas de consumir em preparos doces e salgados é, sem dúvida, a banana. São diferentes bananas, em formatos, em cores, e certamente em sabores. São tão variadas, que fazem desta fruta uma preferência quase unânime na construção de uma identidade do paladar do brasileiro.

E assim, as bananas, muitas, constroem os nossos hábitos alimentares, e estão nas escolhas do que podemos chamar de preferências de sabores que também integram o nosso património alimentar.

Sobre a história da banana e sua difusão, ainda há muitos pontos de conflitos especialmente pelos especialistas em etnobotânica. Muitos atribuem a diáspora da banana no mundo a partir da espécie Musa paradisíaca, proveniente da Ásia, outros atribuem a difusão da banana num variado acervo de espécies de terroir americano, diria sul-americano.

A banana está nas mesas, nas bancas das feiras e dos mercados; e em muitos outros locais onde se pode ter acesso a este grande acervo alimentar que reúne tantas variedades desta fruta emblematicamente tropical.

Além do consumo in natura, eu creio que é o de maior ocorrência das bananas aparecem em diferentes interpretações doces, que mostram tendências e estilos regionais nas muitas receitas que buscam trazer o melhor sabor, e a melhor estética para cada doce, porque doce tem que ser bonito, para assim ser consumido na sua essencialidade.

Entre as muitas receitas de doce de banana que existem, quero destacar uma receita clássica, tradicional, e muito comum de ser encontrada nas casas nos restaurantes; e em muitos outros locais onde se pode viver a experiência dos doces. Refiro-me ao doce de banana de rodinhas ou o doce de banana de rodelinha, um preparo à base de banana, açúcar, cravo e canela; e, sem dúvida, com as melhores assinaturas das doceiras e dos doceiros que se dedicam a este ofício fundamental de adoçar não apenas a boca, mas de adoçar o corpo e o espírito.

RAUL LODY

Bolo Barroco - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

O Bolo Barroco

Barroco é um estilo artístico que começa na Europa; e, em especial, na Itália, a partir do século XVI, e se estende por outros países, povos e culturas, inclusive nas colônias de Portugal, até chegar ao Brasil.

O auge do Barroco foi nos séculos XVII e XVIII, valoriza-se o luxo por meio do uso do douramento empregado em muitos elementos decorativos, e a religião volta-se a mais ampla e alegórica celebração da fé.

É o ouro que chega às igrejas, que chega aos palácios, às indumentárias. O douramento invade os hábitos e os costumes, sendo amplamente valorizado no trabalho de escultores, de joalheiros, de costureiros, entre outros ofícios que louvam a Deus.

Este estilo no Brasil é chamado de Barroco tardio, por ter se fixado especialmente nas igrejas nos séculos XVIII e início do XIX; chamado também de arte colonial.

O Barroco marcou imaginários perante a fé e tocou noutras manifestações, como nas técnicas artesanais que possibilitavam revelar os desenhos, os volumes, e nos materiais que pudessem traduzir este estilo nas casas, nas mobílias, nas roupas, na gastronomia, e, em especial, na doçaria.

Afirma-se que o Barroco está e compõe a nossa arte popular, especialmente no artesanato de rendas e bordados, nos entalhes sobre madeira de muitos escultores, na pintura; entre muitas outras formas de expressar luxo e riqueza por meio de elementos visuais. Este imaginário traz motivos recorrentes às igrejas coloniais, as roupas e aos objetos, que bem definem um estilo que revelava um novo conceito de morar e de se relacionar com o corpo.

Na confeitaria são muitos os exemplos de delícias doces que se apresentam barrocamente como nas joias e nos entalhes, e que mantém o imaginário do douramento do Barroco.

Na confeitaria, os bolos tradicionais, que são confeitados com glacê à base de açúcar, são verdadeiras expressões dos volumes dos entalhes e dos desenhos das suas volutas que se entendem como de estilo Barroco. Assim, mantidos na estética, e no conceito de beleza, o bolo guarda a identidade deste estilo que busca o imaginário da nobreza, e se pode dizer que muitos doces são verdadeiras joias barrocas feitas de açúcar.

Raul Lody

Doce ibéricos para o Natal - Museu do Açúcar e Doce

Docemente ibéricos para o Natal

Há um grande entendimento histórico sobre os doces relacionados às celebrações, pois o doce é também revelador de um processo culinário especial, que agrega uma valorização estética, uma produção autoral e/ou tradicional, e que atende diferentes calendários festivos.

E quando se aproximam as celebrações do Natal com um amplo ciclo de base cristã que culmina no dia dos Santos Reis Magos, em 6 de janeiro; e, assim, vivem-se cardápios memoriais e patrimoniais.

Sabemos que as receitas especiais para os cardápios das festas, neste nosso ambiente multicultural, são amplíssimas e têm como base a cozinha ibérica, e, em destaque, a cozinha portuguesa. Uma cozinha transcontinental que traz os sistemas alimentares, e muitos saberes culinários, do Ocidente e do Oriente.

Tudo isso está à mesa para marcar e revelar a doçura necessária nas manifestações das festas e da religiosidade. Dessa maneira, preserva-se memórias ancestrais e fundantes das muitas cozinhas regionais, e mesmo nacionais em âmbito brasileiro.

Além das tão celebradas rabanadas, fatias de parida ou fatias douradas, há muitos e diferentes bolos e tortas que seguem processos autorais, de criação e de expressão gastronómica regional.

Também para este rico acervo de doces, temos as roscas de reis ou o tão consagrado bolo-rei, que lembra uma coroa, remetendo-se as coroas dos três Reis Magos do Oriente. Um doce marcante nas cozinhas ibéricas, e crescentemente nas nossas celebrações de brasileiros.

Ainda, os filhóses, os coscorões, e outros “fritos” feitos à base de farinha de trigo e que podem ser recheados; que também estão nas nossas cozinhas, tão multiculturais e multiétnicas, destacadamente portuguesas. E nestes contextos dos fritos, quero trazer as azevias, verdadeiros pastéis recheados de doce de grão-de-bico, e por isso conhecidos como fritos de grãos. São muitos sabores, muitas referências, muitas memórias; e muitas criações doces para se viver a festa e a religiosidade à boca.

 

 

RAUL LODY

rapadura - MAD Museu do Açúcar e Doce

Rapadura: Um mercado historicamente global

O açúcar é um produto global que foi amplamente difundido a partir das Grandes Navegações de Portugal nos séculos XV e XVI. Inicialmente, este produto era uma especiaria ou pela sua raridade um presente oferecido como uma quase joia, e circulava exclusivamente pela realeza e pelo clero.

No âmbito da arqueologia da alimentação, sabe-se que há mais de 5000 anos na China, realizavam-se processos artesanais para obtenção do açúcar a partir do caldo da cana-de-açúcar. São registros que mostram o açúcar granulado, com características sólidas que, provavelmente, resultava da secagem ao sol, e seguia para o consumo.

A formatação do açúcar em tabletes, e em outros formatos retangulares, chamados de rapadura, começa a ser produzida em larga escala para alcançar um consumo cada vez mais ampliado; também, abastecer as muitas embarcações que aproximavam o Oriente do Ocidente, como as Grandes Navegações de Portugal.

Na Índia, consegue-se os principais processos da produção do açúcar, e seus muitos produtos, como o melado; e, destaque para diferentes tipos de rapadura. Estes processos tecnológicos, e seus equipamentos, da Índia para o fabrico do açúcar, constituem a base para os nossos engenhos de açúcar, numa verdadeira civilização, que é conhecida no Brasil como civilização do açúcar.

Ainda, há o valor nutricional da rapadura que inclui carboidratos, minerais tais como: potássio, cálcio, magnésio, fósforo, sódio, ferro, manganês, zinco e cobre; e as vitaminas: B1, B2, B5, B6, D2, E.

Assim, cada vez mais, associa-se a difusão e o consumo dos diferentes tipos de rapadura dentro de um entendimento de alimentação saudável, e que recupera importantes bases de sistemas alimentares tradicionais, e que marca uma expressão patrimonial.

 

 

 

RAUL LODY

vinho de caju - Museu do Açúcar e Doce

O doce vinho de caju

Há um olhar dominante para o vinho como uma bebida feita apenas a partir de diferentes tipos de castas de uvas. Contudo, ocorrem nas nossas tradições gastronómicas outros tipos de bebidas chamadas de vinhos, que são também feitos de frutas, porém muitas delas frutas de terroir brasileiro. E, entre elas, quero destacar o caju, essa fruta tropical da nossa Mata Atlântica.