Bolos de Bacia

“[…] a doçaria é uma arte típica e variável de região para região, cujas diferenças são impostas pela história e pela geografia. É a invasão estrangeira, e é o convívio social, levando ao cruzamento de culturas; mas é também a diversidade de produtos naturais, permitindo diferentes experiências e combinações, que conduzem à descoberta de novas receitas.”

Maria da Conceição Vilhena, 2000

 
 

O Bolo de Bacia de Pernambuco chama nossa atenção pela capacidade de transformação ao longo dos séculos, apesar de manter o mesmo nome até os dias atuais. A evolução desse bolo se revela por meio da apropriação de novos ingredientes e técnicas de preparos, em diferentes épocas, de acordo com os contornos da sociedade de cada período, sem abrir mão, porém, do nome original. Essa pesquisa, portanto, constitui uma tentativa de rastreamento da história desse famoso bolo considerado patrimônio cultural pernambucano, para compreensão desse fenômeno utilizando como fonte livros de receitas de períodos distintos.

O Bolo de Bacia, de acordo com Gilberto Freyre1, não é um doce brasileiro novo como muitos supõem, mas aparece no livro de receita mais antigo publicado em Portugal, de autoria de Mestre Rodrigues (figura 1)2, cuja receita transcreve em seu livro.

Mais tarde, Maria Leticia Cavalcanti reforça a afirmação de Freyre: “Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais antigo livro de culinária de Portugal (“A Arte de Cozinha”, 1680), de Domingos Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos)”.3

No livro Açúcar, Freyre também publica a receita de Bolo de Bacia à moda de Pernambuco:

“Batem-se 12 gemas de ovos com 20 colheres de açúcar; depois de tudo bem batido, põe-se 1/2 libra de manteiga, leite de 2 cocos e deita-se amassa de mandioca até ficar em boa consistência de assar. A massa deve ser bem seca.” 4

Bolo de Bacia - Museu do Açúcar e Doce
figura 1

 

Em uma publicação mais recente, Cavalcanti fornece a seguinte receita de Bolo de Bacia:

Ingredientes: 10 xicaras (de chá) de massa de mandioca, 6 xícaras (de chá) de açúcar, 500g de manteiga, 12 ovos, 6 xícaras (de chá) de leite de coco puro, 1 pitada de sal.

Preparo: Lave a massa de mandioca, esprema em um pano e peneire (ela deve ficar seca) Reserve. Bata bem a manteiga com o açúcar, até ficar um creme, Reserve. Junte as gemas, as claras em neve, a massa de mandioca, o leite de coco [com indicação da página para a produção de leite de coco], e o sal. Leve ao forno pré-aquecido, em forma untada com manteiga e polvilhada com farinha de trigo.”5

 


 

O livro Arte nova, e curiosa, de conserveiros, confeiteiros e copeiros, de 1778, considerado o primeiro livro dedicado exclusivamente à doçaria, também apresenta três receitas de Bolo de Bacia que utilizam respectivamente, bacia vidrada (figura 2), bacia ou prato de prata e bacia de fartes (figura 3).6

A partir da comparação das receitas portuguesas estudadas concluímos que os Bolos de Bacias publicados nesses livros eram tortas, do tipo pastelão, recheadas que alternavam finas camadas de massa (que podia ser de pão, inclusive) com recheios variados incluindo açúcar, amêndoas, marzipan, ovos reais (ou fios de ovos – que supõe-se terem aparecido em 1665), marmeladas, cidrão, casquinha de laranja cristalizada , açúcar, canela e água de flor, sempre na presença de muitos ovos e manteiga. A bacia de fartes da terceira receita foi propositalmente assinalada para que pudéssemos observar o emprego da mesma forma em ambas as produções, o que nos ajuda a compreender o Bolo de Bacia português como oriundo dos Fartes.

 
Bolo de Bacia - Museu do Açúcar e Doce

Desse modo, observamos que houve a permanência da massa, embora dividida em mais camadas e da bacia como forma, recipiente que caracteriza a estética, mas ocorreu uma diversificação dos recheios e uma sensível redução das especiarias. Observa-se, portanto, nesses Bolos de Bacia uma apropriação de elementos da doçaria conventual ou palaciana (doce de ovos e fios de ovos), como podemos constatar pesquisando as receitas de Fartes de Ovos de Fio do Convento de Santa Clara de Évora, de 1729, e Fartes de Ovos do Convento de Odivelas7, de acordo com a atualização do gosto português.

É possível que as fartes aqui desembarcadas em 1500, e que sobrevivem até hoje em outros estados do Nordeste brasileiro – ora conservando o nome, como é o caso dos Fartes de Sobral no Ceará, ora renomeada como o Doce Seco8, presente na região do Seridó, Rio Grande do Norte (ambos totalmente adaptados aos ingredientes da região) – possam ter resistido com o nome de Bolo de Bacia em Pernambuco. Pois, a consistência desse bolo pernambucano produzido com massa de mandioca apresenta uma similaridade com a textura da espécie original que servia de recheio às fartes seiscentistas. Naturalmente, a escassez de ingredientes permitiu que se popularizassem versões simplificadas e adaptadas aos recursos e saberes da época, o que caracteriza o predomínio no Brasil colonial de uma doçaria popular e pobre.

Do mesmo modo, podemos notar também que houve uma evolução entre a escrita e na transmissão das receitas do bolo de bacia pernambucanos de 1932 e 2009, em que a última apresenta maior precisão nas medidas e mais clareza na descrição dos processos. E, apesar de apresentarem muita semelhança, diferem completamente das receitas de Bolo de Bacia registradas nos livros portugueses.

Em um livro lançado recentemente, Raul Lody reserva um capítulo para os Bolos de Bacia. O autor também transcreve a receita antológica de Domingos Rodrigues, porém, aponta a complexidade dos ingredientes e processos culinários como um fator determinante para a adaptação da receita pernambucana. E, por fim, reproduz a receita do Bolo de Bacia pernambucano contida no livro Açúcar. Esclarece ainda que o Bolo de Bacia é muito popular como um bolo individual assado em uma forma de papel e encontrado em padarias, confeitarias e vendas ambulantes como uma refeição rápida ou para acompanhar um café. Segundo ele, a apresentação na forminha de papel plissado rendeu-lhe, atualmente, o nome de Bolo de Saia. 9

Na realidade, esse bolo de bacia pernambucano a que Lody se refere, não tem mais qualquer semelhança com as receitas apresentadas anteriormente. Na internet, hoje, é possível obter diversas receitas dos atuais Bolos de Bacia ou Bolo de Saia. O que elas têm em comum? A ausência de mandioca e do leite de coco que foram substituídos por farinha de trigo e leite integral respectivamente, bem como a alteração das operações culinárias com a introdução de novos aparelhos de cozinha, como podemos verificar no exemplo a seguir.

 


 
 

Receita do Bolo de Saia ou Bolo de Bacia

copiada do site Teretetê na Cozinha (figura 4 abaixo):

Bolo de Bacia - Brasil Bom de Boca

figura 4: Bolo de bacia ou bolo de saia

(Fonte: Teretete na cozinha)

Ingredientes: 500 gramas de trigo, 400 gramas de açúcar, 04 ovos, 300 gramas de margarina, leite (usei 01 xícara), 01 colher de sopa de fermento.

Modo de Fazer: Coloca na batedeira o açúcar com a margarina, bate até ficar embranquecido, depois coloca os ovos e bate mais um pouco e vai colocando a farinha e alternando com o leite até que a massa fique homogênea, bate mais um pouco, depois coloca o fermento. Unte as forminhas e polvilhe com farinha de trigo ou asse na própria forma de papel colocando ela [sic] dentro de uma forma tipo de empada sem untar. Não encha até a borda porque ele vai crescer, basta colocar mais um pouco que meia forminha. Leve ao forno a 180°C por cerca de 20 minutos ou até que estejam douradinhos. Rendimento: 24 bolinhos.”10

É muito provável que a “bacia vidrada” mencionada na receita de Arte Nova e Curiosa para Conserveiro, Confeiteiro e Copeiros, se assemelhe a esta retratada na tela Josefa de Óbidos, em 1670 (figura 5). A mesma bacia dos fartes medievais que serviu de inspiração para o bolo de Domingos Rodrigues e que nomeia o tradicional bolo pernambucano, até hoje. Nesse caso, não seriam os bolos de bacia um tipo de fartes?

Bolo de Bacia - Brasil Bom de Boca

figura 5: Cesta com Cerejas, Queijos e Barros. Josefa de Ayala Figueira (1670)

Luce Gaird explica que como no domínio dos hábitos alimentares tanto a tradição, quanto a inovação “têm a mesma importância, […] o passado e o presente se entrelaçam para satisfazer as necessidades do momento, trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias”11, como aconteceu no caso do novo Bolo de Bacia ou Bolo de Saia, hoje tão parecidos com os muffins ingleses. Assim, o abandono de antigas práticas deve ser considerado como o resultado da “transformação da cultura material e da economia de subsistência que lhe é solidária” .12 A mudança da natureza das provisões modifica os gestos culinários, e as receitas que estavam ligadas a eles também desaparecem, e passam a subsistir apenas na lembrança. Por fim, Giard afirma que “uma cultura que se imobiliza decreta sua própria morte.”13 E isso explica tudo…

 


 
 
 

REFERÊNCIAS

1 Freyre, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Cia das Letres, 1997, p. 57

2 Domingos Rodrigues, Arte de Cozinha, Lisboa, s/d, pp. 179-180.

3 Cavalcanti, Maria Lectícia Monteiro. Açúcar no Tacho in: A civilização do Açúcar. Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007, p. 156

4 Freyre, Açúcar, p. 112.

5 Cavalcanti, Maria Leticia Monteiro. História dos Sabores Pernambucanos. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2009, p. 263.

6 “A uma bacia destas vidradas […]” Braga, Isabel M. R. Mendes Drumond (Estudo e atualização de texto). Arte nova, e curiosa, de conserveiros, confeiteiros e copeiros. Sintra: Colares Editora, 2001, pp. 55-57.

7 Cabral, Maria Isabel de Vasconcelos. O Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas. Lisboa: Editorial Verbo, 1999, p. 130.

8 Cascudo, Luís da Câmara. Doces de Tabuleiro in: Supertição no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1985, pp. 218-223.

9 Lody, Raul. Doce Pernambuco: Uma viagem pela memória histórica e cultural da doçaria pernambucana. Recife: Cepe Editora, 2019, pp. 147-148.

11 Giard, Luce. Artes de Nutrir. In: Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre (orgs). A invenção do cotidiano, v.2. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 212.

12 Giard, Luce. Sequências de Gestos In: Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre (orgs). A

invenção do cotidiano, v.2. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 274.

13 Ibid, 285.