Manuê ou Manauê: Existe bolo mais brasileiro?

Resumo: Os cadernos de receitas de nossas avós continham várias receitas de manuê ou manauê (dependendo da região). Esses bolos coloniais eram de massa densa, na maioria das vezes a base de milho ou mandioca, e geralmente cortados em quadrados para servir. Cascudo chamava esse tipo de bolo de engodo para enganar a fome. Em algumas regiões eles aparecem também como broas rústicas, assadas na folha da bananeira como o famoso João deitado do Sudeste, ou como bolo de bacia em Paraty.

 

J. B.Debret: Negras vendedoras de sonhos, manuês e aluá (1835)
Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19593/negresses-libres-vivant-de-leur-travail

O registro mais representativo da importância dos manuês para a alimentação do Brasil colonial que conhecemos, provavelmente, é essa prancha de Jean-Baptiste Debret que retrata o comércio ambulante de negras de ganho no Rio de Janeiro, entre 1817 e 1831. No entanto, no texto desse trabalho, o pintor confunde a descrição de manuê com a de empada.

Para compreendermos os manuês, é necessário buscarmos suas diferentes composições e apresentações ao longo de história. O escritor Guilherme Figueiredo que viveu entre 1915 e 1997, por exemplo, descreve o manuê como uma “iguaria indígena e ‘civilizada’ pela mão do negro”. Discorda de Aurélio Buarque de Holanda que, em seu dicionário, define manuê como uma “espécie de bolo feito com fubá de milho, mel e outros ingredientes”1. Já o etnógrafo, Luís da Câmara Cascudo, explica que o “manuê é um doce popular para merenda e não para sobremesa. Há de muitas espécies, mas os preferidos são os de milho. É comida pesada, enche-bucho, engana-fome, pertencendo à série preclaríssima dos ‘engodos’. Fazem manuês com fermentos e bicarbonato de soda, num desrespeito à simplicidade rústica da veneranda guloseima, contemporânea do povoamento dos sertões, manhãs do séc. XVIII. Come-se por todo o Brasil. As vezes mudam-lhe o nome, mas pelo lado de dentro, o manuê continua inamovível”2. A pesquisadora, Eliane Morelli, encontrou nos cadernos de receitas de senhoras campineiras (séculos XIX-XX), outros sinônimos para Manuês como “Managues, Manáveis, Manauês e Managão” e afirma que “a mesma receita, com muitos nomes, muitas variações de ingredientes e uma mesma apresentação”3.

A origem do Manuê aponta para os bijus, a broa indígena produzida com massa de mandioca ou de milho assada embalada em folha de bananeira. Com o tempo, o português enriqueceu a receita com o acréscimo de ovos, leite, açúcar e gordura enquanto o africano contribuiu com seus ingredientes, técnicas culinárias e estética. A denominação dessas broas tem sempre um caráter jocoso, já que receberam diferentes nomes na região Sudeste como: broa de pau-a-pique, joão-deitado ou mané-deitado, cubu, mata-homem, etc., em alusão ao órgão sexual masculino. As broas de pau-a-pique tiveram grande importância na alimentação dos tropeiros que as divulgaram pelas regiões brasileiras. Encontrei em Jataí, Goiás, uma senhora que faz um Manuê de mandioca exatamente igual à essas broas4. Outra descoberta interessante foi de que, no Amazonas, o Bolo Pé de Moleque é uma broa de pau a pique produzida com macaxeira mole, banana, açúcar, ovos, manteiga e cravo5.

Um fato curioso é que em Pirangi do Norte, Município de Parnamirim, RN, ao invés de broas, ainda hoje, se faz um bolo de mel de rapadura com massa de mandioca, castanha de caju, cravo, erva-doce, manteiga, ovos e leite coco. A massa é achatada como um disco sobre uma folha de bananeira, e coberta com outra folha, depois assada sobre o forno à lenha. Essa produção, chamada de Bolo Preto, é feita por um grupo de mulheres da mesma família nos dias que antecedem o natal para presentear e compartilhar com amigos e familiares na noite de natal.

1 Figueiredo, Comidas, meu Santo, 1964, p. 56.

2 Cascudo, História da Alimentação do Brasil, 1983, vol. 2, p.662.

3 Morelli et al, Delícia das Sinhás: História e Receitas Culinárias da Segunda Metade do Século XIX e início do Século XX, 2007, p. 95.

5 Agricultora de Tabatinga ensina a fazer o pé-de-moleque do Amazonas: Otambaqui.com.br – data: 16/07/2018.

 

 

Produção de Bolo Preto em Pirangi do Norte/RN – natal de 2002.

Arquivo pessoal Chefe Lucia Soares

 

 

Broa João deitado do Cerrado

Fonte: https://gshow.globo.com/receitas-gshow/receitas/broa-joao-deitado-do-cerrado-de4997d6-05b9-4eb3-b8dc-2d06d66fdb26.ghtml

 

Pé-de-moleque do Amazonas

 

 

 

http://www.otambaqui.com.br/agricultora-de-tabatinga-ensina-a-fazer-o-pe-de-moleque-do-amazonas/

Em O tronco do Ipê, José de Alencar também se refere aos manuês na véspera do natal do Vale do Paraíba, na Região Sudeste: “(…) pretas da cozinha ocupadas em diversos misteres, como arear as caixas de manuês, bater pão de ló, ralar gengibre e cidra para os pasteis, e cortar as folhas de bananeira para as mãe-bentas”1. O que nos leva a crer que havia uma relação entre os manuês e os Bolos Pretos potiguares, e entre eles e o natal, desde o séc. XIX.

Outro fato muito curioso é que em Paraty/RJ, há referências aos manuês de bacia, isto é, massa de manuê assada em bacia (tabuleiro). De acordo com o historiador paratiense, Diumer Mello, a origem do Manuê ou Manauê se confunde com a de Paraty2. A fartura de melado de cana é responsável pelo sabor desse bolo que contém açúcar, gordura, fermento e farinha de trigo. Também há registros de receitas antigas com melado e fubá de milho, na região de São Paulo.

Desse modo, podemos também observar que há uma relação entre os Manuês e os Bolos de bacia, como nos mostra esta receita recolhida por Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti em Pernambuco: “Bolo de bacia – Ingredientes: 10 xícaras de chá de massa de mandioca, 6 xícaras de chá de açúcar, 500g de manteiga, 12 ovos, 6 xícaras de leite de coco puro, 1 pitada de sal”3 que nada mais é do que uma receita de manuê. Se buscarmos outras receitas de bolo de mandioca, massa de mandioca, aipim, macaxeira ou de Mané pelado vamos nos deparar com ingredientes e quantidades similares à essa. Do mesmo modo que o bolo pé-de-moleque do nordeste, os bolos de batata doce, cará, de leite, etc., na minha opinião, fazem parte do extenso grupo de manuês, embora possam ser apresentados em formas de buraco no meio. Sendo assim, minha hipóstese é que manuê seria um grande grupo de bolos que se caracterizam por serem densos e úmidos, enquanto as denominações broa (dentro das especificações determinadas acima), bolo de bacia (manuês servidos em porções individuais: tabuleiro cortado em quadrados ou forma de cupcake) e bolo (manuês apresentados como os bolos pretos ou em formas de buraco no meio) são apenas variações estéticas.

1 Alencar, O tronco do Ipê, 1871, p. 130.

2 Reali, Manuê de Bacia in: Almanaque Brasil de Cultura Popular, abril de 2004.

3 Cavalcanti, História dos Sabores Pernambucanos, 2009, p. 263.

 


 

Acervo Chefe Lucia Soares

Receita de Manuê de Fubá

Ingredientes:

250g de fubá fino de milho (de preferência de moinho de pedra)

100g de leite de coco

80g de açúcar refinado

1 lata de milho verde drenado

125g de manteiga sem sal

2 ovos

25g de farinha de trigo

5g de fermento em pó

1 pitada de sal

 

Modo de Preparo:

  1. Deixar o fubá de molho coberto com água, de véspera. No dia seguinte, observar que o fubá desceu e é possível descartar a água e espremer o fubá e reservar. Caso não deixe de molho, ao menos umedeça o fubá como se fosse fazer cuscuz.
  2. Na véspera também, bater um coco sem casca com 1 ½ xícara de água quente, espremer para tirar o leite e levar à geladeira. No dia seguinte separar o leite de coco da água que ficou no fundo do recipiente e pesar 100g.
  3. Derreter a manteiga e esfriar.
  4. Drenar o milho verde e desejar no liquidificador. Juntar, então, o leite de coco, o açúcar, os ovos e a manteiga e bater por cerca de 5 minutos.
  5. Coar a mistura em uma peneira para retirar o bagaço do milho, e acrescentar o fubá mexendo bem, por último, adicionar a mistura de farinha de trigo, fermento e sal.
  6. Depois de bem misturado, despejar a mistura em uma forma untada com manteiga e polvilhada com farinha de trigo.
  7. Levar ao forno pré-aquecido à 180º C por 45 minutos.
  8. Depois de frio, cortar o bolo em quadrados ou losangos.

 

Passo-a-passo da receita

 

Referências:

  1. Alencar, José de. O tronco do ipê. Rio de Janeiro: Garnier, 1871.
  2. Cavalcanti, Maria Lectícia Monteiro Cavacanti. História dos Sabores Pernambucanos. Recife: PE: Fundação Gilberto Freyre, 2009.
  3. Cascudo, Luís da Câmara. História da Alimentação do Brasil.Belo Horizonte: Ed. Itatitiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1983.

  4. Figueiredo, Guilherme. Comidas, meu Santo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964.

  5. Morelli, Eliane et al, Delícia das Sinhás: História e Receitas Culinárias da Segunda Metade do Século XIX e início do Século XX. Campinas/SP: CMU: Arte Escrita, 2007.
  6. Reali, Silvia e Heitor. Manuê de Bacia in: Almanaque Brasil de Cultura Popular. São Paulo, abril de 2004.

 

Lucia Soares

 

 

 

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