É tradicional nos estudos sobre doçaria ibérica e, em especial, na doçaria brasileira, ter um olhar distanciado da Índia. Contudo, este olhar deveria ser muito próximo, pois as bases históricas e tecnológicas no fabrico de açúcar, da cana-de-açúcar, são estabelecidas na Índia. Refiro-me a Índia tropical, uma região que é muito próxima dos nossos territórios tropicais.
No Brasil, há, então, ambientes propícios para se empreender processos originalmente artesanais para fazer o caldo da cana; para fazer rapadura, melado e açúcar, entre outros produtos.
As experiências dos engenhos de açúcar, na Índia, foram orientadoras para os engenhos da Ilha da Madeira, em Portugal, e que de lá chegam para o Brasil, com os saberes tradicionais de se fazer açúcar, especialmente para o Nordeste brasileiro. E tantas foram e são as receitas de bases comuns entre a Índia e o Brasil, diálogos doces na afirmação de identidades e de patrimônios alimentares.
Entre as muitas relações gastronômicas criadas pelos ingredientes, pelas receitas e pelos usos dos ingredientes, destaca-se o coco, esta fruta tropical tão marcante nos nossos sistemas alimentares de brasileiros.
O Coco, tão nosso, tão brasileiro, tão do litoral Atlântico, porém tão asiático em nascimento e em fonte ecologicamente também tropical, que vem do outro lado desse mundo, possivelmente da Índia.
Falo do Coco nucifera L., que para os orientais é conhecido como a planta providencial, porque do coqueiro de tudo se tira proveito: para alimentação, para manufatura de vestuário, para arquitetura, além de variados objetos artesanais, entre muitos outros usos.
Independente da ocorrência do coqueiro no litoral do Panamá, quando da chegada de Cristóvão Colombo, foram os portugueses que introduziram o coqueiro em Cabo Verde, na África, e daí veio para o Brasil.
Gabriel Soares de Souza informa que: “as palmeiras dão cocos, se dão na Bahia melhor que na Índia (…) foram os primeiros cocos à Bahia de Cabo Verde donde se enchem a terra e onde frutifica dos cinco para os seis anos”. (Souza, Soares de. Notícias do Brasil. São Paulo. s/d)
Na cozinha brasileira, os produtos vindos do coco dão um sentimento e um reconhecimento nativo. Coco para tantos pratos: arroz de coco, feijão de coco, bredo de coco, sururu de coco, tapioca ensopada, camarão de coco, peixe de coco, farofa de coco para acompanhar o pirarucu; pedaços de coco nos balaios juntamente com as pipocas em honra ao orixá Omolu. Também, sobre milho vermelho cozido, tiras generosas do coco para formar a receita do axoxô, prato mais apreciado do orixá Oxóssi – Odé – o caçador.
Ainda, nas receitas de arroz-doce, no tão tradicional cuscuz de farinha de milho, tão nosso, tão brasileiro, e que traz profundas lembranças das técnicas culinárias do Magreb, povos e culturas do norte do continente africano, da região do mediterrâneo.
Um outro exemplo que mostra as fortes relações das cozinhas da Índia tropical com o Brasil está em um dos doces mais populares, refiro-me ao doce de banana de rodela ou de rodelinha, geralmente acrescido de cravo, cravo da Índia, e canela em pau e açúcar. Sem dúvida, uma receita indiana, e que faz parte da nossa tradição de consumir este doce. Nas receitas indianas, pode-se ainda acrescentar leite de coco, cardamomo e manteiga ghee.
Assim, o coco com as suas variadas interpretações, tecnologias artesanais de preparo, faz com que se aproveite tudo desse, tudo o que ele possa oferecer em sabor, em adesão à mesa brasileira.
Em Açúcar (1939) de Gilberto Freyre, o autor pernambucano cita: “…biscoitos de coco, broinhas de coco, cocada, cocadinha, doce de coco, sabongo…”
Ainda, destaque para o doce “sabongo”, receita que traz a ancestralidade de unir coco e açúcar. Entretanto, cria-se uma mistura que se torna famosa, a “tão celebrada cocada”. A nossa brasileiríssima cocada.
Certamente, a cocada é uma das referências mais imediatas da cozinha brasileira quando se pensa no coco. Segundo a receita de Gilberto Freyre no seu livro “Açúcar”, há uma proporção de um quilo de açúcar para um coco.
Trabalha-se a calda, adiciona-se o coco, mantêm-se sempre o olhar vigilante e sensível de quem sabe fazer doce, e percebe a forma, o cheiro, o ponto em que essa mistura se torna a cocada; para aí descansar sobre tábua de madeira até esfriar, e então ser cortada. Observa Gilberto: “põe-se ao sol para secar” (Açúcar, 1939).
Também, é comum o uso do doce de coco para recheios, para trazer o sabor do litoral ou o sabor tropical; ou, ainda, o coco ralado para as coberturas, numa proposta estética do branco dominante, que vem do nosso tão estimado Coco nucifera L.
Assim, o coco, inicialmente exótico como a jaca, a manga, a fruta-pão, a carambola, a graviola; entre tantas outras que se tornaram nossos por pertencimento, que se abrasileiraram, chegaram aqui para formar sistemas alimentares extremamente simbólicos e representativos daquilo que consideramos genuinamente brasileiro.
RAUL LODY