Autor: MuseuAcuDoc

O arroz de leche no restaurante mais antigo do mundo El Botin em Madri

O arroz de leche no restaurante mais antigo do mundo El Botin em Madri

O famoso restaurante madrilenho El Botin, fundado em 1725, é considerado o mais antigo do mundo. Ele inicia suas atividades como uma hospedaria, já que à época era proibido a venda de comidas prontas em estabelecimentos públicos. Contudo, neste local hoje histórico, os clientes da hospedaria levavam suas carnes, e outros preparos, para serem assadas nos fornos a lenha da hospedaria.

Esta tradição dos assados, dos fornos artesanais à lenha, permanece como marca fundamental da tradição gastronómica deste lugar que é dedicado especialmente aos assados de suínos. Entre os muitos pratos destaca-se o “cochinillo asado”.

Fiel ao meu ofício, e com o desejo de verificar in loco, fui jantar no restaurante El Botin para poder viver e me emocionar com tanta história gastronómica reunida por séculos de funcionamento ininterrupto neste lugar.

Certamente pedi este prato emblemático e identitário do restaurante, o tão famoso “cochinillo asado”, que foi precedido de entradas deliciosas, como as “morcillas”, e para o grande final, um postre também próprio e emblemático das tradições da doçaria espanhola, diria ibérica, que é o arroz de leite, o nosso tão querido e popular arroz doce.

Este preparo doce, que íntegra a civilização Magrebe no território consagrado e conhecido como El-Andaluz, sul da Península Ibérica, chega como um elemento da herança civilizadora de uma longa ocupação feito pelos povos do norte do continente africano na península ibérica durante a expansão do islã para o ocidente.

Assim, nas nossas tradições da doçaria brasileira nós encontramos muitas e diferentes interpretações de receitas, e modos de preparar, do tão estimado arroz doce, uma sobremesa que é tão integrada ao nosso imaginário da doçaria tradicional e popular.

Bem, retomando o tão apreciado arroz de leche do restaurante El Botin, Trago alguns dos ingredientes desta receita que é feita à base de leite de vaca, arroz, cascas de limão Siciliano e de laranja, pau de canela, sal, e canela para polvilhar o prato antes de servir.

E para melhor ilustrar este texto, sege a “carta de postres” do restaurante El Botin recolhida durante o jantar, para marcar a memória e mostrar o seu acervo de doces tradicionais da Espanha.

RAUL LODY

Doces tâmaras e o Ramadã

Doces tâmaras e o Ramadã

Um dos cinco pilares do islamismo é o Ramadã, período de um mês que é dedicado ao jejum, às orações, às reflexões e ao fortalecimento dos laços sociais e afetivos. E tudo isso é especialmente realizado nas refeições coletivas, logo ao anoitecer, conhecidas como “Iftar”.
Também este período do Ramadã se destaca pela retomada ou continuidade das receitas das cozinhas regionais de cada povo e cultura, faz-se desse modo uma ação de preservação da sabedoria acumulada nas memórias coletivas.

Embora o jejum seja um elemento significativo na identidade do Ramadã, é a comida, o partilhar a comida, fazer com que todos possam comer com qualidade e quantidade dentro dos princípios da ética religiosa do Islã, é o que marca e identifica a ética e a moral dos seguidores do Alcorão.
Também, marca ainda o Ramadã, o oferecimento de comida por aqueles que podem oferecer, que podem doar comida para aqueles que não teriam uma alimentação condizente neste período de forte afirmação dos muitos papéis sociais que identificam a essencialidade de ser muçulmano.

Assim, após o “Magrib”, oração noturna que precede os rituais coletivos da alimentação conhecidos por “Iftar” em que tradicionalmente esta refeição é iniciada comendo-se tâmaras desidratadas. E a partir deste momento são servidos os diferentes pratos que marcam os sistemas alimentares das populações muçulmanas no mundo.

A tâmara é uma fruta muito relacionada ao imaginário dos hábitos alimentares dos muçulmanos, sendo uma fruta provavelmente originária do norte do continente africano, que se espalhou pelo Oriente médio e pelo mundo.

Refiro-me a espécie Phoenix dactylifera, “tamar” em árabe, fruta que integra diferentes receitas e compõe diferentes cardápios. Por exemplo, na Etiópia é tradicional servir a tâmara acompanhando o café; no mundo Magrebe, esta fruta integra as muitas receitas como o cuscuz de sêmola. E ainda ela está presente na doçaria, na confeitaria e na panificação.

 

Raul Lody

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.

Filhós, Malassada, Coscorões

Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.

Momo, filho do sol com a lua, é um mito grego que está no nosso imaginário como aquele que comanda a folia, que se espalha no Ocidente, por meio dos romanos que estão unidas às Saturnálias aos festejos desse gordo e debochado “rei”.

Na Europa, por exemplo, ele é evocado nos rituais do solstício de inverno com bonecos gigantes que são sacrificados nas fogueiras em rituais agrários de renovação, fertilidade e alimentação.

Tudo se remete aos rituais da fertilidade, da colheita, do nascimento, da beleza apolínea, do culto solar; e sempre sob o comando do rei da folia, que quer beber, comer e valorizar tudo aquilo que é sensorial, carnal, porque é Carnaval.

Cabe destacar a cozinha Al-andaluz, que marca a expansão do Islã para o Ocidente. Isto se dá a partir do norte do continente africano, a África mediterrânea, o Magrebe.

A cozinha de matriz afro islâmica está em muitas cozinhas da Europa e, em especial, as dos territórios do Al-andaluz – península Ibérica.

Essas cozinhas que mesclam árabes e berberes, e assim seus preparos culinários, suas escolhas por ingredientes e receitas, formam uma base de identidade culinária que está viva e marcante na mesa brasileira.

As receitas abaixo são especiais do carnaval e, em destaque, os filhoses, que estão presentes no Carnaval de Pernambuco e dos Açores, Portugal.

São comidas sociais, pois presentear com doces é um ato de profundo significado de afetividade e de amizade, como também preparar doces nas casas para serem distribuídos entre os familiares e amigos.

Como é tradicional na cozinha, cada preparo culinário segue uma sequência de rituais, porque a realização da boa receita está muito além do uso dos ingredientes.

O ato imemorial de cozinhar estabelece relações simbólicas e profundas entre cada alimento, seu uso, sua representação e o seu sabor. Isso marca o preparo das massas de farinha de trigo para as receitas dos coscorões, das ‘malassadas’ e dos filhoses.

 

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

 

Filhós com açúcar e canela

Ingredientes: 350g de farinha de trigo; 250g de açúcar; 10g de fermento; 15ml de leite; 50g de manteiga; 1 ovo; sal, açúcar amarelo, canela e azeite a gosto.

Modo de preparo: bata a manteiga com o açúcar e junte com o ovo e o sal. Misture o fermento à farinha de trigo e faça uma massa. Deixe-a levedar; e então, sobre uma superfície, espalhe a farinha para que a massa se abra. Recorte a massa em pedaços e frite em azeite fervente e pulverize com açúcar e canela.

 

Filhoses de aproveitamento de pão

Ingredientes: 500g de abóbora; 500g de pão; 6 ovos; 2 laranjas; 1 cálice de aguardente; açúcar, canela e leite a gosto.

Modo de preparo: em fatias, embeba o pão no leite, fazendo o mesmo com a abóbora. Junte o pão à abóbora e faça uma massa, acrescentando as raspas e o sumo da laranja, a aguardente e os ovos. Leve a massa à fritura em azeite bem quente e pulverize as porções com açúcar e canela.

 

Malassada

Ingredientes: 1k de farinha de trigo; 60g de fermento de padeiro; 3 copos de leite gordo; sumo de uma laranja; raspas de 2 laranjas; mel de cana ou melado de cana a gosto.

Modo de preparo: misture a farinha de trigo com o fermento e a água. Adicione as raspas e o sumo das laranjas, os ovos e o leite e faça uma massa homogênea, e então deixa levedar. Frite as porções em azeite bem quente e, depois de douradas, cubra-as com generosas colheradas de mel de cana.

 

Coscorões

Ingredientes: 125 g de manteiga; 03 ovos; 02 laranjas; 02 xícaras de farinha branca de neve; açúcar e canela a gosto; 1 cálice de aguardente.

Modo de preparo: bata os ovos com o açúcar, o sumo das laranjas, a manteiga e a farinha. A massa deve lembrar a massa do pão, e assim fica até levedar. Recorte e frite no azeite quente. Polvilhe com açúcar e canela.

Sem dúvida, comer é uma festa, e tudo que se oferece no ritual coletivo é especial e está repleto de significados, porque é preciso comer a festa.

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

 

FILHÓS, MALASSADA, COSCORÕES. Os doces sabores do Carnaval em Portugal e no Brasil.
Foto Jorge Sabino

 

RAUL LODY

 

 

Biscoitos do Nordeste: bons de ver e bons de comer

Sem dúvida, para a confeitaria e a panificação a categoria biscoito torna-se um campo plural e diverso que apresenta inúmeras possibilidades de receitas, de tipos, e certamente de sabores. Isto também irá atestar as possibilidades dos ingredientes conforme cada terroir.

Provavelmente as primeiras massas de biscoito foram produzidas no século XVII, na França, para a fabricação do “biscoito do rei”, embora outras referências tragam informações sobre o amplo ciclo das Grandes Navegações realizadas por Portugal, onde alguns tipos de biscoitos especiais tornavam-se o principal alimento durante estes processos de longas viagens pelos oceanos, que se pode datar no final no século XV.

É importante observar que o biscoito tornou-se um alimento do cotidiano já há muito tempo, normalmente um biscoito doce que está presente em diferentes tipos de refeições, para atender aos mais diferentes desejos, interesses e paladares.

No caso brasileiro, vale destacar que as muitas possibilidades de biscoitos que são oferecidos nas confeitarias, padarias, feiras e mercados populares, possibilitam um acesso às muitas receitas, que ganham com o tempo suas tendências regionais, autorais. E assim suas receitas marcam a identidade de doceiras, de confeiteiros; e de estabelecimentos em que estes produtos são comercializados.

No caso do Nordeste, são inúmeros os biscoitos que seguem as mais tradicionais receitas, e oferecem identidade para esse verdadeiro valor patrimonial na cultura alimentar da região.

Dentre essa tão rica tipologia, quero destacar o tão querido e popular bolachão, que se distingue por ter um formato avantajado, de ser um pouco mais rijo que a maioria dos biscoitos, e de proporcionar grande saciedade.

A partir deste olhar, quero trazer alguns tipos das chamadas bolachas/biscoitos mais consumidas, mais populares no comércio, e que mostram também os diferentes processos de invenção, de reinvenção, e de manutenção de receitas centenárias, que certamente chegaram de além-Atlântico.

Então vamos conhecer os biscoitos de: queijo, alho, manteiga, churrasco; coco seco, cebola roxa, nata, extra fina; passa-raiva, nata-goiaba, charque, Suíça, mata-fome; canela-fofa, sete-capas, integral, sequilho; bolo de goma, mesclado, água e sal, sodinha; meia-lua alho, língua-de-sogra, Maragogi doce, lua-cheia queijo, regalia; praieira, trufado goiaba, trufado chocolate.

Verdadeiramente para conhecer os biscoitos do Nordeste é preciso experimentar, é preciso comer para perceber suas texturas, seus ingredientes, seus aromas, e seus sabores.

E assim, certamente, estas experiências gastronômicas trarão grandes referências para o conhecimento e para o reconhecimento dessas comidas doces, na sua maioria, já tão nacionalizadas, tão abrasileiradas.

 

Raul Lody

Tareco - Foto Eduardo Gazal

Tareco – na mesa do rico e na mesa do pobre

Texto e fotos: Eduardo Gazal

Dentro da doçaria pernambucana, que se estende aos estados vizinhos, encontraremos o tareco.

São biscoitinhos doces, com formato arredondado e coloração dourada.

Todos conhecem, agrada às crianças, adultos e pessoas com idades mais avançadas.

Seu sabor é inconfundível e sofre pequenas alterações independentemente dos locais de sua manufatura.

Encontramos para venda em padarias, mercadinhos e nas estradas.

O tareco é unanimidade como guloseima doce. Um verdadeiro ‘diverte bocas’.

 

 

 

Para o embasamento mais acadêmico, o livro Dicionário do Folclore Brasileiro (em sua 12ª edição, de 2012), de Luís da Câmara Cascudo, relata o seguinte:

“Tareco. Bolinho torrado, feito de farinha de trigo, ovos e açúcar, redondinhos e saborosos. Indústria pernambucana, que se popularizou pelos estados vizinhos, o tareco é oferecido aos passageiros dos comboios que demandam o Recife, e conhecido por todas as idades. Data, ao que parece, dos primeiros anos do século XX”.

 

Tareco - Foto Eduardo Gazal
Dicionário do Folclore Brasileiro, Luis da Câmara Cascudo – Foto Eduardo Gazal

 

 

 

 

Natal Tropical - MAD - Foto Jorge Sabino

Um Natal com doces de frutas tropicais

Os imaginários tradicionais e populares trazem muitas referências sobre comidas e bebidas que devem compor as tão celebradas ceias de Natal. Contudo, estes imaginários referem-se a dietas alimentares do hemisfério norte.

Lá, onde neste momento, dezembro é o inverno, onde muitas localidades têm inverno rigoroso, repleto de neve. Cá, no hemisfério sul, vivemos um verão pleno, muito sol e calor, sendo esta também a temporada de muitas frutas, como a manga, o caju, o abacaxi, entre outras que compõem os nossos hábitos alimentares durante todo o ano. Neste ambiente de frutas, quero destacar a banana, na sua variedade de tipos e de sabores. Certamente uma fruta tropical emblemática.

Desse modo, em dezembro é comum realizarmos as nossas ceias com assados de carnes de diferentes tipos, com molhos acrescidos de muita gordura; além disso, acrescentamos os doces estão repletos de cremes, as frutas cristalizadas, porque copiamos as celebrações da Europa, onde no inverno as frutas são mais raras, e por isso são glaceadas para serem consumidas nas festas de fim de ano. As bebidas são também a base de vinhos tintos, licores e o outros mais adequados a estação de inverno. Também, compõem esses cardápios algumas frutas secas como: nozes, amêndoas, avelãs, uvas em forma de passas; entre outras comidas muito mais apropriadas para o inverno.

Então, porque não pensar em opções de ceias mais adequadas ao nosso verão, verão sempre muito quente, onde as comidas e as bebidas devem ser muito mais refrescantes, tropicalizadas, para assim serem melhor apreciadas integradas ao nosso meio ambiente.

Ainda, neste olhar sobre a ceia tropical de Natal, quero destacar como é interessante gastronomicamente, e certamente muito saboroso, o consumo de frutas in natura, para aproveitarmos o seu sabor na intensidade, perceber a beleza da cor e da textura de cada fruta.

Certamente são tantas as opções de frutas, frutas do cotidiano, frutas que fazem parte das nossas referências de brasileiros. E a banana está integrada neste amplo imaginário que idealiza nesta fruta uma imagem do que é tropical. E mesmo ela sendo procedente da Ásia, a banana passou a ser uma fruta assumidamente brasileira.

Ela é um verdadeiro ícone tropical. A banana traz sua luxuriante cor imersa no sol. Isto tudo faz com que haja um entendimento, e uma ampla agricultura de povos nativos da América Latina e do Caribe idealizados como paraísos tropicais.

Gilberto Freyre tem assumidamente um método preferido de análise social que se dá por meio da comida. Ele busca criar uma verdadeira mentalidade de nacionalização de produtos, de cozinhas, de receitas; e de hábitos alimentares que identifiquem o brasileiro. É uma verdadeira busca por comidas de identidade.

“Porque em relação a natureza, não pensamos ainda, nesses, quatrocentos anos, de inquilinos a donos (…) Não merecemos a palmeira, nem o juazeiro, nem o tamarineiro. Merecemos, talvez o mamoeiro e a bananeira, já muito nossas”.
(Freyre, Gilberto. Um paradoxo para o Recife In “Diário de Pernambuco”, anos 1920)

Gilberto mostra as opções de frutas da região e de frutas exóticas, e mostra também que estas frutas devem assumir suas próprias falas culinárias, integrar os hábitos, e ampliar as opções dos alimentos. Tudo localiza um sentimento que leva a valorização dos produtos locais, e traz a comida como uma referência de lugar, uma indicação de terroir.

Assim, há uma leitura avançada, para os anos 1920, sobre ecologia e sobre a comida nos contextos da cultura e, em especial, do patrimônio alimentar brasileiro. Mais tarde, nos anos 1930, ele publica pela primeira vez em língua portuguesa a palavra ecologia no seu livro “Nordeste”, e esta obra pioneira localiza uma civilização a partir de uma fruta exótica, a cana sacarina.

O açúcar da cana de açúcar une-se às frutas nativas para formarem uma rica e diversa cozinha de doces, de doces ibéricos que foram tropicalizados, abrasileirados.

Gilberto aponta para os hábitos alimentares locais, e dá destaque para a banana, fruta há muito integrada à mesa regional. Fruta do cotidiano e que está nas mesas desde o café da manhã até as sobremesas mais elaboradas, como a tão estimada “cartola”. Preparo feito a partir da banana-prata, bem madura; queijo de manteiga, açúcar e canela.

As frutas tropicais nativas como o caju, o abacaxi, a pitanga, a goiaba, o araçá, misturam-se com outras frutas tropicais exóticas, vindas do Oriente, como a jaca, a manga, a graviola, a fruta-pão, o jambo, entre tantas que já se abrasileiraram, e que fizeram do Brasil seu território de representação e de identidade.

Com diferentes frutas, há o costume de se fazer duas preparações culinárias tradicionais, as frutas em calda e os chamados doces de “massa”. Isto mostra também os diferentes aproveitamentos das frutas, pois as receitas de doces são formas de conservar e ampliar o consumo das frutas.

Há os doces em calda, muitas vezes acompanhados de complementos como queijos. São doces para serem apreciados dentro de compoteiras de vidro ou de cristal. As frutas nas caldas, em ponto de fio, quase transparentes, para poder revelarem a cor e o brilho de cada fruta.

E ainda, há outras percepções que os doces promovem durante o seu preparo, são os odores, seja da fruta ou das especiarias como o cravo, a canela, ou outra; que faz quem está dentro da casa ou da cozinha ir até o fogão, e reconhecer a assinatura da doceira daquela receita familiar.

Sem dúvida, estão nas receitas familiares as mais importantes memórias pessoais; e, desta maneira, cada prato traz referências, e sentidos especiais, para a ritualidade da casa e das relações hierarquizadas da própria família. A receita do doce de banana de rodelinha, uma receita feita com quantidades e modos subjetivos, pessoais, possibilita que este doce tenha tantos acréscimos e assinaturas de temperos, de especiarias, que marcam cada preparo, cada maneira de se fazer este doce.

Por exemplo, os memoriais “Cadernos de receitas de D. Magdalena”, mulher de Gilberto, mostra uma receita do doce de banana de rodelinha que era feita na sua casa em Apipucos: duas dúzias de bananas-prata, maduras, cortadas em rodelas, três xícaras de açúcar, e água. Cozinhe as bananas com o açúcar em água suficiente que dê para cobrir. Adicione cravo, se quiser. (Receita do livro “À Mesa com Gilberto Freyre”. Org. Raul Lody. Ed. Senac Nacional, 2004).

Assim, geralmente os doces de frutas são feitos de forma muito simples, e o ponto do doce é que dá a qualidade autoral e emocional ao doce.

São tantas opções de doces de frutas, doces também para serem apreciados na sua estética, na beleza da sua cor, da sua forma; beleza que sugere o seu consumo, porque tudo isso se inclui no entendimento pleno da alimentação.
E ainda mais quando essa alimentação é festiva e de celebração, e aí novamente trago o amplo diverso processo de festejar o Natal, certamente festejar pela boca, com as comidas e com as bebidas mais adequadas ao nosso clima.

Certamente a presença de doces de frutas, de doces festivos do Natal com as frutas tropicais, fazem desta festa, uma festa mais nossa, mais brasileira, multiculturalmente brasileira.

RAUL LODY

Foto Jorge Sabino

Acaçá de leite: Da receita africana à mesa baiana

O acaçá é uma comida feita a partir do milho branco que recebe diferentes interpretações culinárias; sendo também uma das comidas de maior significado religioso para as tradições do candomblé, e de outras tradições que expressam a religiosidade de matriz africana. Neste caso, o acaçá é geralmente chamado de ekó.

A receita tradicional do acaçá para os modelos culinários das culturas da África Ocidental, de onde chega esta comida para o Brasil, dá-se a partir do uso do milho branco demolhado por algumas horas, depois de retirada a água, e passado por um processo de transformação em massa.

Com esta massa faz-se uma espécie de mingau grosso que é depositado em porções, geralmente na quantidade de uma colher de pau comum, em pedaços de folha de bananeira, já passadas pelo fogo para adquirir flexibilidade; aí os acaçás são devidamente embrulhados artesanalmente num formato específico; então eles são colocados numa panela para serem cozidos.

Nesta receita não há nenhum tipo de condimento, nem mesmo o uso do sal, porque este acaçá será um acompanhamento para comidas muito condimentadas como, por exemplo, no caso da cozinha afro-diaspórica, acompanha-se com o caruru de quiabo ou o vatapá, entre outros.

Também, este acaçá ou o ekó, integra-se a cozinha sagrada dos terreiros de candomblé, sendo uma das mais tradicionais comidas de matriz africana. Inicialmente, uma das muitas variações gastronômicas do acaçá é o acaçá doce, onde se acrescenta o açúcar na massa. Há o acaçá de leite que recebe leite de gado vacum ou leite de coco e açúcar.

Ainda, o acaçá de leite integra um cardápio da cozinha baiana chamado de “Ceia Baiana”, onde se serve pamonha de carimã, pamonha de milho, mugunzá, bolos, entre outros.

Sem dúvida, o acaçá é uma das comidas mais marcantes da gastronomia afro-diaspórica.

RAUL LODY

MAD (Museu do Açúcar e Doce) - foto Eduardo Gazal

Doces Europeus

Fotos – Eduardo Gazal
Texto – Maria Gazal (Cineasta)

 

Os doces europeus, que foram incorporados à doçaria brasileira ao longo dos séculos, fazem parte de uma rica tradição gastronômica que se mesclou e incorporou ingredientes.

Presentes em diversos contextos na Europa, desde aeroportos até restaurantes e eventos sociais, essas iguarias são verdadeiras primazias apreciadas por todos.

A travessia do Atlântico não parece mais uma tarefa difícil, porém a história dessas delícias é formada por uma longa jornada de experiências que revolucionaram o paladar local e mundial.

 

 

 

 

 

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Pixaim, um bolinho de beira de praia

Texto e foto: Josué Francisco da Silva Júnior

 

O bolinho de pixaim é uma iguaria ainda presente em alguns estados do Nordeste — Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, pelo menos — e que mantém um ar de comida de praia, por conta da sua origem, que se perdeu no tempo, e de um ingrediente marcante na sua composição, o coco. Parece que nasceu no litoral e daí espalhou-se pelo interior. Lembro de comer em Garanhuns, no Agreste, ainda criança, e minha mãe já comprava antes, mas lá tinha o nome de “cocorote”.

Sem dúvida, os bolinhos de pixaim trazem a assinatura primordial africana e até hoje os mais afamados e com modo de fazer peculiar são confeccionados no povoado quilombola de São Lourenço, a histórica vila nascida em torno da antiga igreja de traços simples do século XVI, localizada no município de Goiana, litoral de Pernambuco. Na sua vizinhança, estão a heroica Tejucupapo das mulheres guerreiras e a vila praieira de Carne de Vaca, um dos berços do brinquedo Pretinhas do Congo, também de ascendência africana.

Os ingredientes do saboroso bolinho basicamente consistem de farinha de trigo — variantes usam massa puba ou de mandioca, como antigamente —, coco fresco ralado, açúcar, ovo e uma pitada de sal. A manteiga, pelo preço elevado, tem sido substituída pela margarina e cada pessoa tem um jeito de fazer. Uma ou outra receita usa também água e fermento, mas é incomum. A massa é mexida com as mãos para dar a consistência firme ideal e que não pode ser mole como na maioria dos bolos. Assado em um tabuleiro no forno a lenha — uma unanimidade para o sucesso da receita — resulta na sua crocância por fora e maciez por dentro. É lanche de padaria, de bodega, vendido nas ruas, em barracas e nas feiras.

Esses pixains da foto que ilustra o artigo são da venda de Gilmar, na rua da Matriz, feitos por sua tia, em São Lourenço de Tejucupapo, município de Goiana, Pernambuco.

 

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Savarin, uma doce-homenagem em um doce-homenagem

Um doce que traz maneiras doces de homenagear o tão consagrado estudioso, verdadeiramente um filósofo, fundador dos conceitos que orientam até hoje o entendimento histórico do que é a gastronomia, refiro-me à Brillat-Savarin, autor do clássico “A fisiologia do gosto” (França, 1825). Livro originalmente titulado como “A fisiologia do gosto ou meditações sobre gastronomia transcendental”.

A Savarin são atribuídos os estudos que buscam unir aspectos da fisiologia humana, especialmente referentes aos sentidos, nos contextos dos cenários sociais e culturais da França do século XIX. Assim, este autor privilegia entendimento histórico, e ancestral, da cozinha francesa, numa espécie de sacralização do que podemos chamar de gastronomia francesa, que até hoje é um caso de legitimidade do que é a gastronomia, embora muitos movimentos ampliem estes entendimentos, diria saíram da restrição chamada de franco-centrada.

Savarin traz alguns aforismos clássicos que revelam o seu entendimento, complexo e amplo, sobre o que é comida e cultura, melhor dizendo num entendimento fundacional sobre o que é cultura alimentar, por exemplo: “o destino das nações depende da maneira como elas se alimentam”; e, ainda, “dize-me o que comes e ter direis quem és”.

Há no mercado da gastronomia dois exemplos comestíveis que homenageiam Savarin, são eles um pequeno bolo fundado na receita do clássico babá ao rum, que poderá ter cobertura de chantili ou culminado com macedônia de frutas frescas; o outro exemplo gastronômico é queijo Savarin, queijo feito à base de leite de gado vacum e acréscimos de natas.

Estas homenagens profundamente integradas ao objeto de interesse de estudo de Savarin, que é viver o sentido, e o sentimento, do paladar integrado aos demais sentidos, para assim experimentar de maneira plena, diria existencial, os prazeres do paladar, totalmente desvinculados dos pecados que nascem dos prazeres à boca.

 

 

Raul Lody