Categoria: Mostra temporária

Tabuleiro de japonês, no bairro da Várzea, Recife, PE. Foto: Jacqueline França

Japonês, a cozinha do açúcar anda pelas ruas

Texto de Josué Francisco da Silva Júnior

O japonês é um famoso doce de tabuleiro e o ofício da sua venda é um elo sem igual das cozinhas com as ruas. Faz parte da memória afetiva dos pernambucanos e, particularmente, me traz muitas lembranças do tempo de criança.

De imediato, me recorda meu sobrinho João e sempre associo o pregão das ruas do Recife à sua infância na Rua do Cupim, no bucólico bairro das Graças, hoje em dia nem tão bucólico assim. Lembro que quando o vendedor passava com seu tabuleiro gritando “Japonêeeeeis!”, ele corria para a sacada do apartamento numa alegria que só vendo e passava o dia imitando o pregoeiro que acenava da calçada.

Não sei a origem do nome “japonês” no Recife e na Zona da Mata pernambucana e penso que não tem ligação com o Japão, visto que os doces nipônicos não têm tanto açúcar como os nossos.

É popular em muitas localidades do Nordeste do Brasil sob outras denominações, como quebra-queixo por exemplo, embora em Pernambuco esse nome seja usado exclusivamente para o doce de coco.

O quebra-queixo, que sempre reinou absoluto no tabuleiro, na verdade, é um doce duro de coco queimado que amolece à medida que vai sendo mastigado, grudando na boca com facilidade. Sim, é preciso ter cuidado com os dentes frágeis, pois o seu nome já denuncia.

O quebra-queixo pode ser tão duro que é vendido, em outros estabelecimentos, na forma de confeito (bala) embrulhado em papel de seda.

Originalmente, no tabuleiro de japonês não havia a diversidade que se tem visto ultimamente. Era apenas o quebra-queixo de coco e mais os doces de coco-branco, de coco em pedaços, de batata-doce e de amendoim, os campeões de venda. Hoje em dia, pode-se encontrar de goiaba, de banana, de mamão, de abacaxi, de castanha-de-caju, embora o coco marcantemente faça parte dos ingredientes da maioria deles.


Tabuleiro de quebra-queixo em Garanhuns, PE. Foto: Carla Denise Cumarú da Silva
Tabuleiro de japonês, no bairro da Várzea, Recife, PE. Foto: Jacqueline França

O japonês é a cozinha do açúcar que se movimenta, levando cheiros e carregando sabores, do mesmo jeito que acontecia com a tábua de pirulitos, o puxa-puxa, o alfenim, as cocadas, o cavaquinho, o mel de engenho e a emblemática bolinha de cambará, que infelizmente não alcancei.

O doce é vendido em um pedacinho de papel marrom à semelhança do antigo papel de embrulhar pão, embora hoje também seja vendido em papel branco e até saquinhos de plástico. O vendedor pode estar a pé com o tabuleiro na cabeça em cima de uma rodilha de pano, de bicicleta ou mesmo parado com o tabuleiro sobre um suporte de madeira num ponto de muito movimento, como no centro da cidade, feiras ou nas estações de ônibus. Pode-se escolher, ao gosto do freguês, mais de um sabor (metade e metade) no mesmo pedaço de papel.

O apito ou uma espécie de gaita usados junto com o pregão “Doce japonêees! Ói o doce, ó!” servem para anunciar ao comprador que ele deve se apressar porque o doce está passando na porta. Só deve-se tomar o cuidado de diferenciar o apito e o tabuleiro do vendedor de japonês, pois guardam semelhanças com os da venda de cuscuz, outro ofício encarregado de transportar a cozinha pela cidade.

E, por fim, é imprescindível ter água por perto para aplacar a fúria da boca depois de receber tanto açúcar, porque esse doce combina, de verdade, é com água.

Alfenin - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

Alfenin, um doce brinquedo

Alfenim. Que saudade que eu tenho desse doce! Pra mim era muito mais que um doce, era um doce brinquedo!

Texto de Angelo Medeiros e Graça França

Lembro quando ia para a feira das Rocas com o meu pai, e ficava encantada com a banca que vendia alfenins: doces branquinhos em forma de bonecos, flores, cachimbos, chupetas…todos contornados de vermelho. Eu tinha uma coleção deles, mas a coleção durava pouco pois criança alguma resiste muito tempo diante de um alfenim – o doce crocante que desmancha na boca! Infelizmente as gerações mais novas não conhecem o alfenim, que praticamente  deixou de fazer parte da nossa gastronomia e da infância de muitos jovens de hoje em dia.

Herança do tradicional doce de tabuleiro do Brasil colônia, o alfenim é um doce delicado e frágil, de cor branca, que se apresenta em formas esculpidas de bonecos, animais, flores e tudo mais que a imaginação criar. A história do Alfenim começa com os árabes, passa pelos portugueses e chega ao Brasil onde adquire forte significado cultural no nordeste brasileiro.

Em 1939 Gilberto Freyre, escrevia no seu livro Açúcar “… Os doces com feitio de homem e de animal, sempre muito encontrados nas feiras portuguesas, e dos quais Leite de Vasconcelos já escreveu que parecem “relacionar-se com antigas formas cultuais” comunicaram-se ao Brasil, sobrevivendo nos mata-fomes de tabuleiro e nos alfenins. Os mata-fomes em forma de cavalo, camelo, camaleão, homem ou mané-gostoso; os alfenins, em formas também de homem, menina, galinha, galinha chocando, pombinhos, cavalo. Doces hoje raros mas que ainda se encontram no Nordeste…”

Para Câmara Cascudo “Alfenim: alfenie, do árabe, valendo o alvo, o branco. Massa de açúcar branco, uma das  gulodices orientais. Em Portugal, já era popularíssima em fins do século XV e princípios de XVI. Citado em Gil Vicente, Jorge Ferreira e Antônio Prestes. Era um doce fino, sem as complicações portuguesas e brasileiras, onde tomou formas humanas, de animais, flores, objetos de uso, vasos, cachimbos, estrelas. Sempre com pequenos desenhos vermelhos. É açúcar e água, apenas. Passa-se goma nas mãos na hora de puxar o fio no ponto do alfenim. De sua fragilidade e mimo restou a comparação melindroso como alfenim. Pertenceu a doçaria dos conventos, ofertado nos outeiros e nas festas de recebimento nas grades nos abadessados portugueses no século XVIII”.

RECEITA DE ALFENIM

“Desde a madrugada estava acordada, mexendo a calda de açúcar, acrescentando-lhe dedal de vinagre da receita. Agora os alfenins, já prontos, secavam em seu tabuleiro, no parapeito da janela da cozinha. Fui ver aquelas cândidas figurinhas: lírios de pétalas frágeis, pombinhos unidos pelo bico, corações entrelaçados…. Loucos por doces, João sentava num tamborete ao lado do fogão e ajudava a fazer o puxa-puxa. Os fios brancos se esticavam entre suas mãos, de uma palma a outra – clara sanfona.  Ele mesmo ficava com cheiro de calda queimada”!

( Heloneida Studart no livro “O pardal é um pássaro azul!”)

INGREDIENTES

5 kilos de açúcar

1 litro de água

1 colher de café de clara em neve

1 colher de chá de limão

MODO DE FAZER

Primeira Etapa: Calda Base

Misturar bem o açúcar, a água e a clara. Levar ao fogo sem mexer e quando começar a ferver retirar a espuma para limpar a calda. Acrescentar o limão, ferver mais um minuto, borrifar um pouco de água pela superfície da calda, desligar o fogo e reservar.

Segunda Etapa: Testar o Ponto de Moldagem

Quando esfriar, retirar a crosta de açúcar que se formou na superfície da calda. Em seguida, vai tirando porções de calda aos poucos e levando ao fogo para dar o ponto de moldagem, que se testa na água fria. Estende-se a calda no mármore molhado, espera esfriar uns poucos segundos, solta as bordas com uma espátula.

Terceira Etapa: Puxa-Puxa

Quando a calda chegar ao ponto de temperatura possível para ser manuseada, ela é puxada e repuxada, até o ponto ideal para moldagem.

Última Etapa: Moldar as Figuras

A última etapa é a moldagem das figuras, usando goma para refrescar a mão e evitar queimaduras. Nesta fase a imaginação e a habilidade para moldar é que fazem toda a diferença.

Projeto Resgate do Alfenim no Rio Grande do Norte

Os chefs Graça França e Angelo Medeiros quando estudantes de gastronomia na UnP, caíram em campo para fazer um trabalho de faculdade a fim de resgatar o delicioso doce feito de açúcar. O trabalho acabou se tornando um projeto sobre “a extinção e o resgate do alfenim”. Segundo Graça, que também é jornalista, foi preciso um árduo trabalho de garimpagem e pesquisa in loco para saber por onde anda o alfenim no estado. A dupla tentou trazer o doce novamente às vitrines natalenses, mas os problemas práticos de fornecimento não deixaram a coisa ir pra frente. Mesmo assim o projeto repercutiu fora do estado, com a participação dos dois no “Mesa Tendências” um Congresso Internacional de Gastronomia organizado pelo SENAC/SP e a revista Prazeres da mesa.

Alfenins de Dona Terezinha – Assu – RN

Na fase de pesquisa do projeto, Graça localizou na cidade de Assu, a única doceira da cidade ainda em plena atividade no ramo. Dona Terezinha ou Tetê dos alfenins ainda trabalha  preservando a receita original, utilizando polvilho nas mãos, na hora da modelagem. Faz isso desde criança. Sua produção é toda caseira, que ela comanda junto às mulheres da família. Ultimamente Terezinha produz apenas sob encomenda, por ocasiões de quermesses, festas juninas e eventos religiosos no interior do estado. Seus alfenins podem ser encontrados em Natal durante a Festa do Boi.

ASSISTA

Vídeo sobre a produção do Alfenim na cidade do Assu-RN, durante a realização do projeto para o resgate do doce no estado.

FONTES
Gilberto Freyre – “Açúcar, uma sociologia do doce com receitas de bolos e doces    do Brasil”
Luis da Câmara Cascudo -“Superstição no Brasil- Cap. Doces de Tabuleiro”.
Maria Marluce Gomes -“História da gastronomia do Rio Grande do Norte”
Jornal Tribuna do Norte-Natal/RN -Caderno Fim de Semana -Matéria super especial sobre sabores em extinção “Ausentes na Mesa”
Diário de Natal -Muito-Edição de Domingo:Gastronomia: Sabor doce e delicado, por Jussara Freire.
Graça França e Angelo Medeiros -Projeto resgate do Alfenim no RN.

FOTOS
Imagens Google
Jornal Tribuna do Norte
Jornal Diário de Natal
Arquivos do Projeto de Resgate do Alfenim de Graça França e Angelo Medeiros.

Publicado originalmente no Blog VENTO NORDESTE em 6 de outubro de 2011.

Vento Nordeste é um blog Nostálgico. Aqui cada postagem tem um pouco da minha vivência no Nordeste, em particular, na minha cidade Natal. Que o Vento Nordeste lhe traga boas recordações dessa terra de tantos encantos, de cultura tão rica e diversificada, desse povo tão amável e acolhedor.

https://papjerimum.blogspot.com/2011/10/sabor-saudade-alfenim-um-doce-brinquedo.html

O Doce Popular Egipciense

Fotos e texto: Eduardo Gazal

Em Pernambuco, antes da gourmetização dos doces, existiam as delícias das casas grandes e os doces populares, vendidos e consumidos nas feiras, mercados e calçadas.

A rapadura e outros doces da mesma linhagem são fabricados artesanalmente em épocas de abundância da cana-de-açúcar. Estoques são providenciados durante os períodos de moagem da gramínea, prática que permanece viva, principalmente, em regiões do Agreste e Sertão do Estado.

Exemplo: na cidade de São José do Egito, no Sertão do Pajeú, aparece o Doce Popular Egipciense. Uma rapadura que recebe polpa de frutas ou raspas e massa de coco. Pode ser chamada também de rapadura temperada. O doce que tratamos foi comprado na cidade de Tuparetama e custou, em setembro do ano de 2023, a quantia de R$ 3,50. Preço modesto para a quantidade de produto e a qualidade da guloseima.

Da imensa ementa da doçaria de Pernambuco, a partir do caldo de cana, fabricamos o mel de engenho, os melados e a rapadura.

Para melhor entendimento da nomenclatura oficial e dos nomes populares, vamos acrescentar trechos do livro “Doce Pernambuco”, do antropólogo e historiador da gastronomia Raul Lody.

Doce Pernambuco
Capa do livro Doce Pernambuco, Raul Lody

No capítulo denominado ‘Doce Vocabulário’ encontramos informações valiosas, a saber:

Mel de Cana – nome tradicional para o caldo de cana.

Melaço – tipo de mel; também conhecido como o mel final.

Melado Coalho – rapadura.

Rapadura – produto fabricado em engenho banguê. O caldo da cana não é purgado, assim conserva todos os sabores originais. Na forma de madeira, o caldo de cana é solidificado e adquire formato retangular, popularmente chamado de ‘tijolo’. É, ainda, marcado para identificar a procedência. Muitas rapaduras são embaladas em folha de bananeira.

Pernambuco é de açúcar

Texto e fotos por Josué Francisco da Silva Júnior

Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br

 

Açúcar vem do sânscrito, mas foram os árabes que nos legaram as-sukkar, como foram eles também que nos transmitiram ár-raçif para nominar o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco, fundado no século XVI, sob a proteção de Santelmo, o santo dos marinheiros.

Independentemente das coincidências nas raízes linguísticas, foi aqui que, há quase 500 anos, teve origem sobre os massapês da Zona da Mata uma avançada “civilização do açúcar”, forjada na mão de obra de negros escravizados sob a dominação da elite branca da época.

Em Pernambuco, é quase heresia se fazer dieta de açúcar, já que, desde tempos imemoriais, a economia do Estado foi alicerçada sobre o produto. Foi a amálgama que edificou Olinda e a transformou, do alto das suas colinas à beira-mar, numa pequena Lisboa dos trópicos. Era o “ouro branco” cobiçado pelos ingleses no Saque do Recife, em 1595 e, no século seguinte, pelos holandeses da Companhia das Índias.

Até a paisagem do Recife não seria a mesma sem o açúcar. Basta olhar as gravuras ou as fotografias que surgiram a partir do Oitocentos para se ver o enxame de navios, barcas e alvarengas nos rios e cais da cidade carregados de sacas do produto, marca registrada que perdurou até pouco tempo atrás.

Embora socialmente injusta e “amarga”, a lavoura da cana-de-açúcar, da qual muito já se falou para o bem e para o mal, deu origem a uma rica culinária constituída por doces bem elaborados e dezenas de bolos opulentos, como o Souza Leão, o Cavalcanti, o Guararapes ou o Luiz Felipe, para citar uns poucos. Aliás, os bolos pernambucanos vieram dos engenhos de açúcar e da ebulição das suas cozinhas, como bem representou o genial Cícero Dias, no seu Engenho Noruega. Têm nome, sobrenome, procedência e, antes mesmo de existir denominação de origem e identidade geográfica, já podiam ser rastreados. É bolo Souza Leão do Engenho São Bartolomeu, do Noruega ou ainda do Jundiá ou do Batateiras, somente para falar do mais famoso, do bolo símbolo da independência gastronômica brasileira, como disse Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, pesquisadora de gastronomia. O Souza Leão de hoje em dia está mais comedido, mas já foi exagerado: massa de mandioca peneirada várias vezes, leite de seis cocos, muito açúcar e manteiga e, pasmem, 18 gemas! Uma verdadeira revolução promovida pelas quituteiras da casa-grande, como não bastassem as tantas revoluções que aconteceram aqui. Essa rebeldia não se deu apenas com o Souza Leão, mas também com o Luiz Felipe, de mesma estirpe, com o seu indefectível ingrediente— o queijo-do-reino —, uma das mais bem-sucedidas explosões do dual doce/salgado.

 

Bolo Souza Leão - foto de Josué Francisco da SIlva Junior
Bolo Souza Leão – foto de Josué Francisco da SIlva Junior

 

Outros bolos icônicos merecem destaque, como o bolo-de-rolo e o bolo-de-noiva-pernambucano, diferentes de tudo no gênero. O primeiro é feito a partir de uma massa intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas, com cuidado para que o doce não ultrapasse a massa. Os puristas admitem apenas a goiabada como recheio e torcem o nariz para recheios surgidos recentemente, como doce de leite ou chocolate. E ai de quem disser a um pernambucano que bolo-de-rolo é rocambole! É quase uma declaração de guerra. Já o bolo-de-noiva-pernambucano possui massa densa e escura, proveniente da mistura de doce de ameixa, frutas cristalizadas, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho Moscatel ou Porto e especiarias, diferente dos bolos de casamento de massa clara do resto do país. Há quem coloque até queijo-do-reino e goiabada. E ainda é coberto por uma farta camada de glacê-mármore feito de açúcar-de-confeiteiro e limão. O bolo-de-noiva-pernambucano possui influência direta do Christmas Pudding britânico, como atesta o antropólogo Raul Lody. Não se imagina que uma iguaria tão complexa tenha sido herança de um povo cuja culinária não possui lá boa fama. Mas, sim, veio dos ingleses, cuja enorme colônia se fixou em Pernambuco a partir do século XIX, e deixou também o bolo-inglês, de constituição mais simples, porém não menos saboroso.

 

Bolo de noiva pernambucano - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Bolo de noiva pernambucano – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

Gilberto Freyre, sociólogo e autor do célebre Açúcar de 1939, afirmava que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, toucinho-do-céu, somente para mencionar alguns.

Em Pernambuco, não basta ser caldo de cana, tem que ser com pão-doce porque açúcar pouco é bobagem. Comida salgada tem que ter doce: pastel de carne moída aqui vira pastel-de-festa e com açúcar! Queijo de coalho come-se com mel de engenho. O que seria da cartola, a clássica sobremesa de banana Prata e queijo de manteiga, sem o açúcar abundantemente polvilhado por cima com canela?

Andar pelas ruas do Recife é ter os ouvidos adoçados pelos pregões “Japonêêêêês!” vindo do vendedor do mais famoso dentre os doces de tabuleiro; ou “Mé nôôôôvo de ingeeeeem!”, do vendedor de mel de engenho na lata, ofício que se perdeu no tempo para sempre. E os doces populares? cocada, pixaim, sambongo, entre muitos outros trazem a grife africana, como toda a cozinha dos engenhos. Ainda hoje, uma volta nas feiras livres pode-se, com sorte, esbarrar numa banca de doces com os incomparáveis quebra-queixos ou chupar cana pura cortada em roletes enfiados em talas de bambu. Sabores de infância que quase não se veem mais.

 

Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…
(Trem das Alagoas, Ascenso Ferreira)

 

…já dizia o gigante Ascenso Ferreira no trajeto de trem pela Mata Sul Pernambucana. Diga-se de passagem que Ascenso junto com João Cabral de Melo Neto foram os poetas que melhor traduziram os canaviais numa verdadeira sociologia em forma de versos.

 

Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
(O Vento no Canavial, João Cabral de Melo Neto)

 

Bebida em Pernambuco vem da cana-de-açúcar e atende por nomes diversos: cachaça, aguardente, caninha ou pinga. Evidentemente, também é patrimônio estadual. E não sem razão, afinal aqui foi o seu primeiro centro produtor e hoje muitas marcas famosas saem dos alambiques distribuídos do Litoral ao Sertão. Sabia que a primeira cachaça industrializada do país foi a Monjopina, do Engenho Monjope, de Igarassu, em 1756? Um raro exemplar dela está lá no Museu da Cachaça, em Lagoa do Carro, a maior coleção do Nordeste, com mais de 12 mil marcas.

As mudas de cana chegaram com as caravelas, porém há certa controvérsia em torno do surgimento do primeiro engenho de açúcar, se em São Vicente ou na Ilha de Itamaracá, no entanto é indiscutível que uma das usinas mais antigas em funcionamento no Brasil é de Pernambuco — a Petribu — moendo desde 1729, quando ainda era engenho. É dela o primeiro açúcar demerara comercializado no país (demerara é aquele açúcar grosso com gosto de melaço, cujo nome se originou da região do mesmo nome na nossa vizinha Guiana). E falando em produtos de engenhos, “rapadura é doce, mas não é mole não!” Vem do Sertão a melhor. Sertanejo que se preza come com farinha para dar sustância. Duas cidades brigam pelo título de Capital da Rapadura do estado, Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo, ambas com seus canaviais espalhados pela Serra da Baixa Verde.

Açúcar e frutas nativas andam de mãos dadas. Caju, umbu, ubaia, pitanga, guabiraba e muitas outras podem ser comidas frescas, mas têm que virar doces, licores e compotas, “tudo à moda de Pernambuco”. Caju é doce de praia, feito em calda ou em passa, antigamente colocada para secar nos telhados das casas de pescadores. Umbu ou imbu, como se diz no interior da região, é doce sertanejo e a fruta dá até uma bebida, a saborosa umbuzada feita com leite. Da guabiraba, frutinha parente do araçá e cada vez mais rara na Zona da Mata, se faz o doce símbolo de Paudalho e que só se come uma vez no ano, por conta da safra curta. Tem até doces de Carnaval, uma das nossas festas mais afamadas, que o digam os filhoses de calda translúcida e os jetones coloridos.

Lembrando de festas, o São João é o palco principal de todos os bolos, doces e afins pernambucanos: canjica, munguzá, manuê, bolo de macaxeira, bolos de milho de todos os jeitos, arroz-doce e mais uma infinidade de guloseimas. Um parêntese deve aqui ser aberto para reverenciar o inigualável Pé-de-moleque pernambucano (há outros bolos e doces diferentes com esse mesmo nome Brasil afora), um bolo escuro de massa de mandioca no qual se adicionam café, castanha-de-caju, erva-doce, canela e cravo-da-índia como ingredientes. É o rei das mesas do mês de junho e já impressiona pela cor. E pensar que a elite imperial não apreciava porque era comida de escravizados!

 

Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior
Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

No Agreste, a cidade de Pesqueira floresceu com a indústria de doces, dando origem a um polo doceiro famoso que se espraiou pelos Vales dos Rios Moxotó e Pajeú. Em Pesqueira, há ainda o Museu do Doce, instalado no prédio da antiga Fábrica de Doces Rosa. Também Bezerros, com suas dezenas de pequenas fábricas de nego-bom de banana e mariola de goiaba, frutas vindas dos brejos de altitude, as regiões de microclimas singulares do Semiárido. A vila de Poço Fundo, em Santa Cruz do Capibaribe, merece destaque pelos doces que são patrimônio do município e que deu origem a um festival bem conhecido na região. Já no Alto Sertão do São Francisco, a bacia leiteira de Afrânio ganhou notoriedade pela fabricação de um doce de leite branco especial comercializado em barra, um sucesso até no vizinho Piauí.

O açúcar também faz parte da história de vida das mulheres pernambucanas desde sempre, como Dona Menininha, doceira de Agrestina, que é patrimônio vivo de Pernambuco. Sabem por quê? É a rainha única do alfenim (de al-fanid, novamente os nossos árabes…), o doce que toma forma de tudo o que a imaginação pode proporcionar. Dona Ceci Araújo e sua família guardam a sete chaves a receita do doce de laranja-da-terra, que fez a fama da bela e fria Triunfo. Segredos também são guardados pelas boleiras tradicionais do Recife, cujas receitas estão nas famílias há gerações. Dona Fernanda Dias comanda a mais conhecida confeitaria da capital pernambucana e produz iguarias exemplares, como o bolo-de-rolo mais perfeito da cidade, hoje espalhado por todo o Brasil. As filhas de Dona Leoni Asfora, Jane e Eliane, são responsáveis pela manutenção da qualidade de um dos bolos-de-noiva mais desejados do Recife, cuja receita herdaram da sua talentosa mãe. Ainda bem que existem as filhas e netas preocupadas em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, que o digam Dona Rita Pereira e sua família, que heroicamente resistem na busca das guabirabas pelas chãs dos tabuleiros de Paudalho, para a feitura do raro e excepcional doce.

 

Cartola - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Cartola – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

O açúcar em Pernambuco está entranhado não apenas na gastronomia e nos bens patrimoniais e culturais, mas muito além disso, está profundamente enraizado na formação do seu povo, na sua economia e na influência que o Estado teve sobre toda a Região ao longo dos séculos. “Sem o açúcar… não se compreende o homem do Nordeste”, resumiu sabiamente Gilberto Freyre.

 

VEJA NOSSA GALERIA DE DOCES PERNAMBUCANOS

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Texto modificado e atualizado originalmente publicado em Comida com História (2022).

 

 

Doce intimidade - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

Doce intimidade

“O menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; e lambuzar-se na geleia de araçá ou goiaba; e brincar com os moleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no (Menino-Deus) muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces”. Diz Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala.

Estas observações de Gilberto Freyre mostram que muitas relações sociais estão fundamentadas nas representações e nas seleções alimentares, nesse caso com ênfase no açúcar, um alimento fundador de uma sociedade brasileira, complexa, multicultural e multiétnica.

Assim, a nossa identidade alimentar é muito marcada pelo doce, numa afirmação das nossas escolhas para comer e beber; e, certamente, na construção das diferentes maneiras de manifestar soberania alimentar.

Esta intimidade e escolha do brasileiro pelo açúcar, açúcar da cana-de-açúcar, recupera uma larga história social e econômica que faz parte de uma base verdadeiramente civilizatória; e, ainda, formadora das nossas escolhas alimentares.

Sem dúvida, o brasileiro gosta, gosta muito, do que é doce. Há um profundo valor simbólico no açúcar, nas suas mais diferentes maneiras de manifestar as possibilidades de estilos alimentares, e que encontram formas criativas e tradicionais de buscar no que é doce o prazer e a alimentação.

 

 

Uma identidade nacionalmente doce se fortalece nos seus hábitos alimentares e nas suas escolhas soberanas do que comer. São muitos valores agregados aos significados do que é doce, e as projeções ampliam-se em adjetivos, tais como: você é um doce; como é doce este lugar; vou te dar um doce; entre outras maneiras de trazer o imaginário do doce nas relações sociais, e com ele o açúcar.

Também, esses valores determinam o que é doce num conceito não apenas alimentar e nutricional, mas num conceito com fortes bases filosóficas e ideológicas.

Há uma presença evidente nos muitos hábitos, e nos sistemas alimentares do brasileiro, uma espécie de intimidade e funcionalidade com o açúcar; e ele está presente na vida de várias formas: açúcar refinado, o que é mais comum para adicionar e complementar comidas e bebidas; rapadura, mel de engenho ou melaço; entre outras.

Tão nosso e tão brasileiro é a mistura da farinha de mandioca com o açúcar ou pedaços de rapaduras, numa realização culinária inicialmente lúdica, mas significativa no que se refere as complementações alimentares das dietas do dia a dia de milhares de brasileiros.

Farinha com açúcar em muitos casos é uma dieta para matar a fome de muita gente. Também se pode adicionar água a esta mistura, é o tão conhecido chibé, utilizado principalmente na alimentação de crianças. É a saciedade proporcionada pela água com a farinha de mandioca.

Transitar pelo açúcar é passar pelas suas muitas possibilidades para atender as necessidades alimentares e nutricionais, que é uma forte recorrência da própria história civilizatória da cana de açúcar na construção dos nossos paladares e dos nossos conceitos culturais do que é doce.

Assim, trazer o açúcar nos doces e nas bebidas artesanais é trazer um tipo de satisfação e realização que a nossa boca entende por doce. Neste mesmo imaginário tão amplo e geral nos nossos sistemas alimentares, liga-se o conceito e o sentido simbólico do que é doce com o sentido simbólico do que é bom.

Quem nunca comeu um punhado de açúcar para ludicamente se adoçar, entre as muitas experiências na conquista do que é doce, subjetivamente o doce é para comer e para manifestar alteridade.

 

 

Raul Lody

Cachaça Triunfo - Museu do Açúcar e Doce (MAD) - foto de Eduardo Gazal

Cachaça Triunfo, do brejo paraibano ao mundo

Fotos e texto de Eduardo Gazal

Conheci a cachaça Triunfo durante meus estudos para produzir um conteúdo específico sobre bebidas do Nordeste do Brasil. Atualmente frequento regularmente o Estado da Paraíba e recebi um livreto em formato de cordel contando a história da Triunfo. Acredito que as pessoas podem se encantar com o cordel, devendo ser conhecido por estudiosos e amantes das cachaças. A história da Cachaça Triunfo é uma saga de empreendedorismo e amor. Começou em 1994, quando o Sr. Antônio Augusto recebeu por herança uma fazenda. Apesar de não ser filho de senhores de Engenho, sem ter as noções básicas para a fabricação de destilados, Antônio tinha um sonho: produzir sua cachaça. Vendeu a fazenda, comprou uma pequena moenda e um alambique, dando assim os primeiros passos. Maria Júlia, sua esposa, participava ativamente do sonho e, durante toda a trajetória de criação da cachaça, acreditou no trabalho de seu esposo. Para apresentar a saga do casal compartilhamos o cordel intitulado “Cachaça Triunfo Num Sonho Realizado”, do paraibano, Flávio Dantas, conhecido como o poeta do povão.

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Com abrangência nacional o IBRAC possui entre os seus associados empresas (micro, pequenas, médias e grandes) dos setores produtivos da “Cachaça”, que correspondem a mais de 80% do volume do destilado comercializado formalmente no Brasil.
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Entre suas atuações estão a realização de ações de defesa de interesses do setor produtivo no Brasil e no exterior, ações relacionadas ao consumo responsável de bebidas alcoólicas, o desenvolvimento econômico e sustentável, o combate ao mercado ilegal de bebidas e à concorrência desleal. Cuida também da promoção, proteção e defesa da denominação “Cachaça” e da sua indicação geográfica, em âmbito nacional e internacional.


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Rua Tiradentes, 20 – Sala 101, Ed. São Januário
Campina Grande, PB | (83) 3077-2127

O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce

O Dicionário do Doceiro Brasileiro: Os livros de confeitaria do Segundo Império Brasileiro

O desenvolvimento de uma culinária própria permeou todo o processo de busca por uma identidade nacional, como parte significativa da produção cultural brasileira oitocentista. A adaptação gradual de novas edições do primeiro livro de cozinha publicado no Brasil, e a [tentativa de] consagração da cozinha brasileira do segundo livro, Cozinheiro Nacional.

Museu do Açúcar e Doce - Rio Doce

Rio Doce, os doces que todo mundo compra

É o caso do município de Rio Bonito, no Estado do Rio de Janeiro, a 85 km da capital. Ponto tradicional dos viajantes que frequentam a Região dos Lagos, ou estão trafegando pela estrada RJ-124, conhecida como Via Lagos.

Às margens da rodovia, encontramos a Casa do Pastel, um agradável ponto de parada que funciona há 20 anos no local.

Em exposição nas prateleiras e nas mesas, os doces à base da nossa corriqueira banana ganham destaque. Outro elemento muito conhecido dos brasileiros, o amendoim também aparece.

Doce culto a Santo Antônio - Museu do Açúcar e Doce

O doce culto a Santo Antônio

Com festa, fé e comida, as celebrações de um dos santos mais populares, Santo Antônio, são vividas. Destaque, para as trezenas de Santo Antônio que antecedem os grandes rituais em 13 de junho.

Depois das cerimônias das trezenas nas igrejas e nos conventos; e, em especial, nas casas, como mais um momento de sociabilidade, onde são oferecidas comidas e bebidas, geralmente comidas doces. Entre estas comidas doces que marcam a tradição em louvar a Santo Antônio estão: mugunzá, bolos, biscoitos, canjica, pamonha. E nestes cenários destaco o arroz doce, uma comida doce tão integrada aos nossos sistemas alimentares.

Mangaba - Museu do Açúcar e Doce

Mangaba, “fruta que o gosto gruda e não sai”

Texto e Fotos por Josué Francisco da Silva Júnior*

“Não sei se a América produz alguma fruta mais bela e gostosa”.

Assim começa a descrição do médico e naturalista Guilherme Piso sobre a mangaba na sua magnífica “Historia Naturalis Brasiliae”, obra-prima escrita com a colaboração de George Marcgraf. Foram eles os primeiros cientistas no Novo Mundo e vieram para Pernambuco na corte de Maurício de Nassau. A mangaba estava entre as frutas prediletas dos holandeses e, diga-se de passagem, foi também uma das primeiras a serem registradas pelos cronistas e viajantes ainda no século XVI.

…é coradinha que nem mangaba do areal. (Fragmento do romance Inocência, do Visconde de Taunay, 1872)

A árvore graciosa de copa chorona, companheira elegante do muricizeiro e do cajueiro nos tabuleiros do Nordeste, como bem disse o explorador alemão Robert Avé-Lallemant, produz frutos redondos ou ovais de diferentes tamanhos e de aroma e sabor únicos. A cor amarelo-esverdeada salpicada de encarnado completa a sua singularidade.

Quando não está totalmente madura a mangaba exsuda um “leite” que gruda nos lábios. Aliás, o verso tomado de empréstimo ao compositor João Santana para o título deste artigo revela lindamente esta característica. O nosso poeta maior João Cabral de Mello Neto também o fez de forma precisa no seu melhor estilo para os Jogos Frutais:

…Mangaba, deixas em quem te conhece visgo, borracha.

Vem da época pré-colombiana o consumo da mangaba ao natural pelos povos indígenas que habitavam o Brasil e que também nominaram a fruta. Mangaba quer dizer “coisa boa ou que serve para comer”, na língua tupi. Os índios também já fabricavam uma espécie de vinho a partir da mangaba, como relatou o Padre Fernão Cardim, ainda no início do período colonial.

A coleta da mangaba nativa nos tabuleiros e restingas do Nordeste, bem como todas as atividades relacionadas à fruta, são um trabalho quase que exclusivo das mulheres, conhecidas como “catadoras de mangaba”. Alguém já disse que mangaba é só pra quem sabe colher. Elas dividem o seu dia a dia entre a mangaba, o mangue, a casa e tudo o mais. Com conhecimentos repassados há gerações, ainda possuem um vocabulário particular cheio de palavras incomuns para a cata da fruta: capota, enfornar, abafemar, de baque, birrinho, baceira, venha-a-nós…

… mangaba, fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo… (Fragmento dos Diálogos da Grandeza do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, 1618)

Mangaba é fruta de verão, de praia, de sol, de areia. É quase um reclame turístico. Chupar mangaba madurinha “de queda” debaixo do pé é uma experiência que só viveciando para sentir. Misturada com farinha mata a fome do povo do litoral na roça ou na pescaria.

Olha é de capota, ou é de caída é adocicada, amadurecida… Boca de alto-falante bem de longe se escuta, com cesto na cabeça na praça ou na feira anuncia a fruta: Olha a mangaba! (Fragmento da canção Mangaba Madura, de Nino Karvan)

A venda da mangaba nas feiras e mercados, nas margens das estradas ou nas portas das casas é elemento obrigatório da paisagem alimentar de muitos lugares do litoral nordestino. O pregão do vendedor “Ô mangaba, ô mangaba… Mangaba, olha a mangaba!” soa nas ruas como o chamado de um muezim. No entanto, são os produtos confeccionados a partir do fruto os verdadeiros néctares e ambrosias do nosso trópico.

Uma das mais nobres frutas desta América é a mangaba, de que se faz rica conserva, bem estimada ainda fora da sua pátria… (Fragmento da obra Frutas do Brasil numa Nova e Ascética Monarquia Consagrada à Santíssima Senhora do Rosário, por Frei Antônio do Rosário, 1702)

Foi da mangaba um dos primeiros registros de uma fruta conservada em açúcar. Está lá no Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, de autoria de Gabriel Soares de Sousa. No tempo dos flamengos, a conserva de mangaba foi usada pelos padres católicos para obter favores ou cair nas graças de Nassau. Numa ocasião, foram ofertados ao Conde quatro barris do extraordinário doce de calda translúcida.

Sorvete, é de mangaba! (Pregão do Recife)

Gilberto Freyre afirmava que as chamadas “frutinhas do mato”, como a mangaba, amadas pelo povo, também tiveram sua fase de esplendor à mesa patriarcal, servidas como doce, geleia ou sorvete. E ele recomendava em seu Pequeno Guia da Cidade do Recife: “a mangaba, o turista deve preferi-la sob a forma de refresco. Ou então de sorvete”. Para Josué de Castro, “o sorvete de mangaba goza, merecidamente, do melhor conceito: é saboroso”. E Jorge Amado deu um jeito de inserir esse ícone da mangaba no reencontro de Tieta com Chalita, no romance Tieta do Agreste: “Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de mangaba, Leonora não conhece…”

A globalização e a rapidez com que as mudanças nos hábitos alimentares foram acontecendo nos últimos anos fizeram com que novos produtos à base de mangaba também se multiplicassem nas cozinhas domésticas, indústrias alimentícias e restaurantes. O surgimento da polpa congelada nos anos 1980 contribuiu significativamente para a popularização da fruta. Antes, os sucos, doces, geleias, sorvetes e picolés dominavam a culinária mangabeira, assim como, em menor proporção, licores e passas. O uso do leite condensado ajudou no aparecimento dos pudins, mousses, cremes, bombons, tortas e uma infinidade de iguarias de mangaba.

Na Fazenda Rio Formoso… alentou-nos um excelente refresco feito com vinagre de mangaba… (Fragmento da obra Viagem pelo Brasil de 1817-1820, de Johann Baptist Spix e Carl Friedrich von Martius)

O refresco registrado pelos naturalistas Spix e Martius, nas suas expedições no século XIX, evoluiu para mixes de néctares e cervejas com blend da fruta já encontrados em grandes supermercados. Restaurantes e docerias sofisticadas de capitais e cidades litorâneas do Nordeste têm incluído no cardápio pratos mais elaborados, com o marcante sabor da mangaba, sendo possível agora encontrar camarão ao molho de mangaba, panacotta de mangaba ou torta chiffon de mangaba, para citar alguns. A mangaba entrou no maelström das cozinhas deixando a sua marca e trazendo toda a cultura a ela associada.

Apesar do incremento da mangaba no mercado, em muitos lugares do litoral nordestino, sobretudo em Pernambuco, o seu consumo se reveste de um saudosismo. A planta desapareceu das áreas naturais de ocorrência e a destruição desses remanescentes é uma realidade. As causas são várias e conhecidas e vão desde a expansão imobiliária à implantação de mono cultivos. Como reflexo, não se vê mais mangaba nos locais tradicionais de comercialização, perdendo-se vínculos importantes com os saberes relacionados à fruta. Infelizmente e em pouco tempo, restará apenas na memória popular e as novas gerações ficarão impedidas de conhecer esse sabor tão especial.


*AUTOR

Josué Francisco da Silva Júnior
Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br