Luiz Felipe, uma joia da cozinha de engenho

Texto e Fotos de Josué Francisco da Silva Júnior (Pesquisador da Embrapa, Recife, PE)

“Há uma verdadeira civilização do bolo em Pernambuco”, assim o antropólogo Raul Lody inicia o seu périplo gastronômico em “Doce Pernambuco”, abordando, dentre outros aspectos, um fenômeno culinário que só existe aqui, a tradição da doçaria de engenho e das cozinhas familiares, com seus bolos recheados de história e cobertos de significados. Foi pensando nisso que uma iguaria especial e que está na minha relação de sabores da categoria “inesquecíveis” me inspirou a escrever este texto.

Vem de um engenho de cana-de-açúcar das antigas terras de Jaboatão um icônico bolo de queijo, que é a mais perfeita conjunção entre o doce e o salgado. Trata-se do fabuloso Bolo Luiz Felipe*, uma joia da culinária da Zona da Mata de Pernambuco, batizado em homenagem a um político pernambucano do século XIX, Luiz Felipe de Souza Leão, senhor dos engenhos Tapera e Santo Inácio.

O Luiz Felipe é um bolo mole, com a consistência de pudim, porém mais firme. Em algumas regiões, é erroneamente confundido com um bolo de leite simples conhecido por Engorda-Marido, Bolo de Moça ou, como se diz na nossa vizinha Paraíba, Bolo Baeta. O Luiz Felipe possui maior complexidade e é confeccionado à base de leite de vaca, açúcar, manteiga, leite de coco natural, farinha de trigo, ovos e um singular ingrediente, o queijo do reino**. Hoje em dia, o queijo do reino tem sido substituído pelo parmesão ou pelo queijo de coalho de preços mais acessíveis, no entanto a receita tradicional e que ainda perdura em muitas cozinhas traz na sua composição o clássico queijo redondo, cuja origem remonta ao Edam holandês.

O uso de queijos em bolos brasileiros, assim como em doces e pudins, já era citado em manuais célebres de culinária do século XIX, como “A Doceira Brasileira” de Dona Constança Oliva de Lima, ou o “Dicionário do Doceiro Brasileiro” de Antonio José de Souza Rego, ou ainda o raro “Doceiro Nacional”. Com o tempo, a combinação de diferentes queijos e ingredientes da terra, como mandioca, macaxeira, milho e coco resultou nos mais diversificados bolos regionais***, nenhum, porém, tão revestido de opulência quanto o Luiz Felipe, já nascido aristocrático.

Assim como o seu “primo” patrimonial mais famoso, o Souza Leão, o bolo Luiz Felipe faz parte da efervescente cozinha da casa-grande e é uma preciosidade criada pelas quituteiras no calor dos seus fornos de lenha. Está presente nas mesas mais elaboradas do São João, mas também em outras épocas do ano, a exemplo da ceia de Natal****, como revela a culinarista pernambucana Dona Nininha Carneiro da Cunha, no seu rico e bem cuidado caderno de receitas de família.

No Recife, há vários, mas acredito que o Luiz Felipe mais fidedigno que conheço ainda é aquele produzido na Casa dos Frios, de Dona Fernanda Dias, e que ilustra este artigo.

No Ceará, onde o Luiz Felipe também virou uma instituição, há variantes possivelmente derivadas do seu congênere pernambucano… quem sabe? Gilberto Freyre já citava em “Açúcar” a receita de um Pudim à Luís Filipe (sic) de Dona Sinhá Pessoa Sabóia de Albuquerque, ressaltando a importância da cidade de Sobral como uma ilha cultural que permitiu que iguarias da Zona da Mata nordestina chegassem ao Sertão cearense. Outra receita do saboroso bolo foi tornada conhecida pela escritora e não menos renomada cozinheira Rachel de Queiroz, no seu “O Não-Me-Deixes: suas histórias e sua cozinha”, que trata das comidas da sua fazenda na região de Quixadá. Os nomes das boleiras e as receitas do Luiz Felipe cearense continuam na memória popular, de Quixeramobim a Fortaleza e outras partes do estado. “Luiz Felipe? Só o da Dona Hilda Costa (mãe de Fausto Nilo). Ali era o bolo!”, lembra saudoso Seu Francisco Edison, ou “Nunca comi um igual ao da Tia Teresinha. Com certeza é de queijo de coalho, mas os bolos dela são cheios de segredo”, afirma Airla Sampaio com a propriedade de quem já provou inúmeros outros.

Devido aos seus ingredientes e ao clima quente do nosso trópico, a vida útil de um Luiz Felipe pode ser bastante abreviada, de modo que ele deve ser consumido tão rapidamente quanto apareça na mesa, e de preferência acompanhado por uma xícara de café, a combinação que melhor lhe assenta.


* A grafia Luiz Felipe, em vez do usual Luís Filipe, foi mantida em conformidade com o nome do homenageado que lhe deu origem, Luiz Felipe de Souza Leão.

** Queijo de sabor forte e encorpado envolvido por uma capa de corante natural de urucum e comercializado em bonitas latas redondas bem lacradas no formato de cuia. É extremamente popular e apreciado em Pernambuco que, não à toa, é o maior consumidor do país, apesar de a principal região produtora localizar-se em Minas Gerais, que fabrica marcas famosas como Palmyra e Borboleta.

*** No Brasil Central, sobretudo em Minas Gerais e Goiás, há o Mané-Pelado, um tradicional bolo cremoso de mandioca, coco e queijo, que pode ser parmesão, minas ou canastra.

**** Curiosamente, o queijo do reino, principal ingrediente do Bolo Luiz Felipe, é muito consumido em Pernambuco, durante as festas de Fim de Ano, ao passo que, no Recôncavo Baiano, onde é chamado queijo de cuia, é mais comum nas Festas Juninas.


Abaixo, são compiladas algumas receitas históricas do Luiz Felipe oriundas de Pernambuco e do Ceará, com suas variações.

RECEITAS

Bolo Luís Filipe
Receita extraída de “Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil”, de Gilberto Freyre, por sua vez originária, segundo ele, de um ramo da família Sousa Leão.

10 ovos, sendo 4 com as claras
2 ½ xícaras de farinha de trigo
3 colheres de queijo do reino ralado
Leite de 1 coco com pouca água
3 colheres de manteiga
5 xícaras de açúcar para fazer mel que fique em ponto de fio.
Depois de juntar os ingredientes, põe-se sobre eles mel quente e vai-se mexendo. Unta-se a forma e leva-se ao forno.


Bolo Luiz Felipe
Receita do Caderno de Dona Nininha Carneiro da Cunha (esta receita também é a mesma de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, em “História dos Sabores Pernambucanos”)

800 g de açúcar
1 ½ xícara de água (para a calda)
150 g de manteiga
3 colheres de sopa de queijo do reino ralado
4 ovos
6 gemas
2 xícaras de farinha de trigo
1 coco
1 ½ xícara de água (para o leite de coco)
Sal
Faça uma calda com o açúcar e a água e deixe ficar em ponto de pasta fina. Retire do fogo, junte a manteiga, o queijo e o sal. Misture os ovos com a farinha de trigo e o leite do coco, que é tirado no liquidificador com 2 xícaras de água. Passe essa mistura pela peneira e junte ao mel depois de frio. Despeje em uma forma untada com manteiga e leve para assar em forno quente.


Pudim à Luís Filipe
Receita de Dona Sinhá Pessoa Sabóia de Albuquerque, extraída de “Açúcar” de Gilberto Freyre.

2 libras de açúcar em ponto de pasta
10 ovos, sendo 4 com claras e os restantes sem elas
½ libra de manteiga
½ libra de farinha de trigo
Leite de 1 coco
3 colheradas de queijo ralado
Misturam-se os ovos, o leite de coco; depois de mexidos bota-se a farinha e o queijo, e, por último, a calda.


Bolo Luiz Felipe da Fazenda Não me Deixes
Receita de Rachel de Queiroz, extraída do livro “O Não-Me-Deixes: suas histórias e sua cozinha”

10 ovos (só 4 claras)
5 xícaras de açúcar
2 ½ xícaras de farinha de trigo
1 pires (cheio) de queijo ralado (queijo de coalho, ou melhor ainda, queijo do reino)
2 xícaras de manteiga
1 copo de leite puro de coco (extraído do coco fresco)
Com o açúcar, faz-se a calda em ponto de pasta. Batem-se as gemas bem batidas; batem-se as claras em separado. Quando a calda estiver no ponto e ainda fervendo, tira-se do fogo e acrescenta-se as gemas, lentamente, mexendo forte. Em seguida acrescentam-se as claras, depois o leite de coco, a manteiga, o queijo e, por último, a farinha de trigo, lentamente mexendo com força. Põe-se numa forma com muita manteiga, polvilhada com farinha de trigo, e leva-se ao forno quente por cerca de 45 minutos. Quando pronto, deixar o bolo esfriar no forno.