Denguê e Afurá: bebidas doces afrodescendentes

São muitas as bebidas chamadas de nutritivas no nosso imaginário gastronômico, tradicional e popular. Muitas vezes elas são chamadas de “vinho”, embora não sejam processadas tecnicamente como o vinho, ou mesmo feitas a partir de uvas.

A palavra “vinho” no nosso mundo regional das cozinhas refere-se a sumo, suco, ou líquido apurado; é o concentrado de uma fruta, de uma raiz; ou da seiva de um coqueiro, como ocorre com o “emu” ou “malafo”, produzido e conhecido como “vinho de palma” – bebida fermentada feita a partir da seiva do dendezeiro. Esta bebida, vinho, integrava os ganhos das quitandas (séculos 18 e 19), que era a venda de comida em tabuleiros nas ruas, nas praças, e na área dos portos. Vendia-se “comida de sustança” para os trabalhadores, especialmente para os trabalhadores braçais.

Oferecia-se angu de milho, feijão, farinha de mandioca; “vinho de palma”, certamente para dar um pouco mais de alegria, já que o emu tem um considerável teor alcoólico, sendo uma consagrada bebida do mundo masculino.

Para os Yorubá, o emu é a bebida do Orixá Ogum, divindade da rua, das ferramentas, do trabalho. É, sem dúvida, um excelente exemplo da eau de vie, designação muito adequada para as bebidas que transformam os humores.

Também, há os vinhos de caju, de jenipapo; de açaí, que é um vinho de uso geral e cada vez mais valorizado como o energético da Amazônia, uma verdadeira seiva da mata. Toma-se esse vinho puro ou misturado com farinha de mandioca, e açúcar; e, ainda, pode-se colocar camarão seco, e tudo mais que possa agregar sabor, e apontar para novas experiências gastronômicas.

Contudo, no universo não alcoólico, as chamadas águas – bebidas que surgem da diluição de elementos sólidos, sem fermentação – aparecem em grande variedade, e funcionam como verdadeiros refrescos tropicais, sempre adoçados, sendo considerados muito nutritivos.

Outro caso é o denguê que é uma bebida feita a partir do acaçá branco, feito de milho branco, que é diluído na água e adoçado; contudo, por ser uma bebida mais espessa é considerado uma bebida/comida, também muito nutritiva. O denguê tem ocorrência nos terreiros de candomblé, sendo utilizado como uma importante base alimentar.

Sem dúvida, o acaçá branco é uma comida muito importante no cardápio de matriz africana; assim, para melhor exemplificar essa comida, trago uma informação de Manuel Querino:

“Deita-se o milho com água em vaso bem limpo, isento de qualquer resíduo, até que se lhe altere a consistência. Nestas condições, rala-se na pedra, passa numa peneira ou urupema e, ao cabo de algum tempo, a massa fina adere ao fundo do vaso, pois, nesse processo, se faz uso de água para facilitar a operação.”

Esse precioso relato de Manuel Querino, publicado em 1922 (Bahia), foi certamente o primeiro texto referente a comida de matriz africana publicado por um afrodescendente.

O denguê pode ser classificado na categoria de bebidas brancas, no âmbito da matriz africana do Brasil. São as bebidas chamadas de “fun fun”, que em língua Yorubá quer dizer branco, e que apontam para as tradições religiosas voltadas aos mitos fundadores. Pois tudo que é “fun fun” é muito antigo e recupera a criação do mundo pelo Orixá Oxalá, criador da terra e do homem; e do orixá Iroko, árvore primordial, que é o contato divino e permanente entre o ayê – terra –, e o orum – céu.

Por isso, recorre-se as comidas e bebidas brancas que representam imaginários da memória ancestral. Outro exemplo de bebida “fun fun”, símbolo da cozinha tradicional dos terreiros, é o afurá.
A partir de uma massa feita de farinha de arroz cozido em água, fazem-se bolinhos que são pulverizados com fécula de arroz; depois esses bolinhos são diluídos em água e adoçados. O afurá é servido como bebida refrescante, pois é para ser servida no calor tropical.

O nosso afurá chega de uma receita milenar do povo Yorubá. A palavra fúrá significa bebida feita de arroz e milho, cozidos, e adoçada com mel. Embora tradicional, hoje, o afurá é uma bebida quase que completamente desaparecida nos hábitos alimentares afrodescendentes.

Por isso, vejo que a reativação de antigas receitas afrodescendentes seja uma forma de buscar o reencontro com as memórias ancestrais, e com as referências identitárias do continente africano.

RAUL LODY