Açúcar como especiaria: uso em receituários da Modernidade

Fernando Santa Clara Viana Junior1

A experiência de uso do açúcar enquanto iguaria que compõe um momento específico das refeições data de meados do século XVIII. Não que surjam aí os doces, que já eram confeccionados ao longo da história a partir do uso de frutas secas, mel e outras substâncias que adoçavam os quitutes preparados. Entretanto, o açúcar passou a ser insumo principal na produção da doçaria somente a partir dos Setecentos.

Conhecemos melhor como isso se deu, em perspectiva histórica, quando analisamos, a título de ilustração, as fontes portuguesas do início da Modernidade. O Caderno de Receitas da Infanta Dona Maria (1538-1577), que data do século XVI, é um bom início. Apesar de ser do período em que, classicamente, a história já não estava mais sob a égide do Medievo, período em que o açúcar era escasso e raro, a cozinha carrega consigo aspectos de longa duração, como disse o historiador Fernand Braudel. Isso significa que, no caderno, muitas das receitas correspondiam às práticas alimentares que antecediam a sua escrita. Ao longo de 67 receitas, dividas entre I – Caderno nos manjares de carne, II – Caderno dos manjares de leite, III – Caderno dos manjares de ovos, IV – Caderno das cousas de conserva, o açúcar era item constante. Da galinha mourisca, temperada com açúcar e canela, à produção das conservas, feitas com xarope de açúcar, em muitas delas aparece o insumo, realçando o salgado, compondo com os sabores picantes ou acres das iguarias.

 

Alguns anos mais tarde, em 1680, vinha à luz o primeiro livro de cozinha português, escrito pelo mestre de cozinha Domingos Rodrigues (1637-1719), intitulado Arte de cozinha. Ao todo, a obra conta com 270 receitas dividias, inicialmente, em duas partes. Na edição de 1693, Rodrigues incrementa a obra com mais uma parte, onde dava conta de registrar cardápios e modos de servir em diferentes ocasiões. Esta obra, substancialmente maior do que o caderno de receitas anterior, apresenta o açúcar também em várias receitas. Para termos dimensão, 103 das 270receitas, ou 38%, contam com o ouro branco, tanto nas receitas salgadas quanto nas receitas doces.

Posteriormente, observamos a invenção de um momento da refeição destinado, exclusivamente, ao consumo de sobremesas feitas a partir do açúcar. Em Portugal, o evento data do reinado de d. José I (1714-1777). O consumo de bebidas coloniais (café, chá e chocolate) adoçadas com açúcar, além dos produtos da confeitaria, que crescia a passos largos, eram marcantes elementos de distinção. No governo de d. Maria I (1734-1816), mais precisamente em 1780, o então chefe de cozinha francês Lucas Rigaud escreveu O Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, atualizando a obra publicada anteriormente, reforçando as influências francesas sobre a alimentação da elite lusa. Ao todo, das 799 receitas trazidas na obra, 18% delas têm o açúcar em sua composição, pouco mais da metade, em termos percentuais, da obra anterior. Cabe reforçar, entretanto, que o insumo se desloca às produções da pastelaria, da confeitaria, deixando de lado, em partes, o seu papel como especiaria.

Vemos, então, que o açúcar é um elemento marcadamente simbólico nas sociedades europeias e que reverbera mundo afora. Com o aumento da produção e da circulação do então ouro branco, seu preço passou por notados ajustes, de modo que passasse a compor um momento específico, fossem na produção de compotas ou de uma ampla e genérica doçaria. A lógica do doce paladar acaba por esconder, na atualidade, a ampla trajetória pela qual passou o insumo, que de especiaria, tornou-se a grande estrela de muitos preparos que reverberam em nosso cotidiano.

1 Doutor em História, historiador e gastrônomo. Professor do curso de Bacharelado em Gastronomia da Universidade Federal da Bahia.

Fotos:

Engenho Manual que Faz Caldo de Cana, 1822
Jean-Baptiste Debret
Aquarela sobre papel, c.i.e.
17,60 cm x 24,50 cm
Museus Castro Maya – IPHAN/MinC (Rio de Janeiro, RJ)
Reprodução fotográfica Pedro Oswaldo Cruz

“Moulin à sucre”, Moinho de açúcar, 1835.
Johann Moritz Rugendas.
Gravura que integra a obra “Voyage pittoresque dans le Bresil”, obra rara do acervo bibliográfico do Arquivo Nacional.
Biblioteca Maria Beatriz Nascimento. OR 2119, div 4, pl 09.

Jean-Baptiste Debret ou De Bret (Paris, 18 de abril de 1768 — Paris, 28 de junho de 1848), foi um pintor, desenhista e professor francês. Integrou a Missão Artística Francesa (1817), que fundou, no Rio de Janeiro, uma academia de Artes e Ofícios, mais tarde Academia Imperial de Belas Artes, onde lecionou.

Johann Moritz Rugendas foi um pintor alemão. Em 1821, aos 19 anos de idade, acompanhou a expedição do Barão Georg Heinrich von Langsdorff ao Brasil, publicando em 1835, em Paris, seu célebre trabalho Malerische Reise in Brasilien (Viagem Pitoresca Através do Brasil), no qual retrata, em belíssimas gravuras, cenas do Brasil Colonial.