O doce culto a Santo Antônio

Com festa, fé e comida, as celebrações de um dos santos mais populares, Santo Antônio, são vividas. Destaque, para as trezenas de Santo Antônio que antecedem os grandes rituais em 13 de junho.

Depois das cerimônias das trezenas nas igrejas e nos conventos; e, em especial, nas casas, como mais um momento de sociabilidade, onde são oferecidas comidas e bebidas, geralmente comidas doces. Entre estas comidas doces que marcam a tradição em louvar a Santo Antônio estão: mugunzá, bolos, biscoitos, canjica, pamonha. E nestes cenários destaco o arroz doce, uma comida doce tão integrada aos nossos sistemas alimentares.

Glorioso Santo Antônio
Com Deus-Menino nos braços
Fazei com que ele nos prenda
Com seus amorosos laços
(Benção)

A entrada dos santos nas casas permitiu uma intimidade que aproximou, num maior e melhor relacionamento, a pessoa com os símbolos do sagrado, com as marcas da fé. Fé à brasileira; fé misturada com diferentes componentes etno culturais. É a presença oficial da Igreja Católica na casa, com amplo imaginário de santos, ícones, de um elenco de formas e cores que vêm de outras mitologias, incluindo a greco-romana.
A voz religiosa do africano se faz ouvir em muitos momentos de resistência, buscando na memória ancestral fontes de identidades e de elos permanentes com suas bases no continente distante, além-Atlântico. Sem dúvida, nesse homem africano, como também no homem português, há o viço islâmico; são tendências e estilos de ver e entender os preceitos do Alcorão conforme os caminhos das civilizações e seus legados aos povos.
Nesses encontros de culturas, tradições e costumes, nessas visões de mundo, enfim, são estabelecidas as trocas, bem como os diálogos e os conflitos da fé religiosa, que, particularmente, prefiro chamar de ‘fé misturada’.

São componentes religiosos que predominam uns sobre outros, conforme o contexto, o tempo histórico, o caso específico; e tudo isso se refere aos desejos, ao poder, à ação dominante de sociedades e culturas, numa busca de cada uma a sua verdade, certamente indiscutível.
Da mistura desses povos que fazem o Brasil, surgem soluções nossas, abrasileiradas, criativas e emergentes, compreensões plurais do homem perante o santo, perante o orixá, perante o símbolo da fé misturada.
Fala-nos Gilberto Freyre sobre brincadeiras de crianças nos engenhos do Nordeste com o Menino-Deus, tão da casa, tão próximo, que fazia parte das conversas, dos jogos e que até comia doces, por exemplo, doce de araçá.
Trazer o santo para a casa não apenas para seu espaço social, mas principalmente o emocional, bem traduz uma vocação intimista, representada pelo falar com sua imagem, brigar, pedir, solicitar aconselhamento, vesti-la e adorná-la.
Nossas Senhoras de brincos, voltas e voltas de trancelins de ouro; Meninos-Deus com roupas bordadas em ouro e prata, em crivo, em renda de bilro e enfeitado com corais, marfim, bolas de louça; são, entre outros, oferecimentos pelo milagre, pelo prazer; e pelo orgulho de ver os santos da casa tão bem tratados como membros da família.
Colocar comida diante de representações de São Cosme e São Damião, os santos gêmeos, como é usual especialmente nas tradições familiares baianas, culmina em grande festa anual com caruru – comida africana à base de quiabo e azeite de dendê – que santos e homens comem, estabelecendo e fortalecendo laços, via devoção.

As trezenas de Santo Antônio são verdadeiras festas domésticas, em que a casa, a família e a comunidade vizinha louvam e festejam o santo.
É outro momento da religiosidade brasileira, que mistura alegria e respeito devocional, manifestados em cantos perante o altar, dentro ou fora da casa, especialmente enfeitado com papéis coloridos e artisticamente recortados, com velas, jarros de flores, toalhas brancas e engomadas, às vezes bordadas em Richelieu, por exemplo.
A reza se faz sob presidência do mordomo ou mordoma, dono da noite, festeiro oficial daquele ritual religioso da casa, que anuncia, às vezes em latim, outras em português, os feitos e as glórias de Antônio.
Após a reza, como ninguém é de ferro, vamos brincar – dançar, cantar as músicas do momento, comer arroz-doce, mungunzá, beber licor de jenipapo.
Bonfim, Conceição da Praia, Santa Luzia e outros também trazem às ruas, aos largos, formas comunais de expressar e traduzir fé misturada. E, fora das casas, outros símbolos acompanham o indivíduo: medalhinhas, bentinhos, santinhos em papel, madeira, metal, dentro de bolsas, pendurados em cordões, formas de trazer junto ao corpo a sagrada proteção, projetando a intimidade da fé.
O prolongamento da reza na rua é a festa do corpo e do espírito. Com o santo, Antônio, entre eles, os homens estão felizes com a comida, a dança, e a festa. Nessa religiosidade à moda, regionalmente funcional, a tradição vive e se renova, acresce-se e se dinamiza, bem como seus entornos culturais.

Salve grande Antônio
Santo universal
Que amparais aflitos
Contra todo mal
(Hino I)

Gentil e guerreiro são adjetivos de Antônio. Sua voz a favor dos pobres, seus dons de falar com a energia divina garantem-lhe títulos atribuídos pela Igreja e consagrados pelo povo.
Sua característica de lutador, própria do franciscano convicto de seus papéis perante os homens e Deus, aproximou-o das populações carentes, que ouvem sua palavra enquanto alento social e espiritual.
Nascido em Lisboa, Portugal, a 15 de agosto de 1195, falecido em Arcela, perto de Pádua, Itália, a 13 de junho de 1231 e inicialmente agostiniano, Fernando Bulhões integra em 1220 a ordem franciscana, com o nome de Antônio.
A canonização pela Igreja fez-se rápida, em comparação com outras, que arrolam processos complexos, levando décadas e até mesmo séculos. Afinal, tratava-se de um santo português, num momento em que Portugal se lançava ao mundo, desbravando e conquistando. Um santo protetor do homem português em suas aventuras pela África e América, pelo Oriente, legitimando as incursões de Portugal pelo mundo cristão e, sobretudo, o mundo não cristão. Antônio, santo das expedições, companheiro, verdadeiro soldado das hordas portuguesas em terras de além-mar.

Nos altares, Santo Antônio usava dragonas, chapéu e espada do exército brasileiro, à época imperial. Hoje ainda, no seu dia, 13 de junho, a imagem da Igreja de São Francisco recebe uma espada, símbolo do defensor, do que protege seus devotos. Na Bahia, recebe a patente de capitão, na fortaleza da Barra, Salvador. Em São Paulo, de coronel; de capitão em Goiás, na Paraíba e no Espírito Santo; de soldado e tenente-coronel no Rio de Janeiro; de capitão de cavalaria em Ouro Preto, Minas Gerais; de tenente no Recife, Pernambuco e até o título de vereador, em Igaraçu, Pernambuco.
A identificação do santo com os militares, traduzindo funções beligerantes, reforça o patronato de guerreiro e o aproxima, no caso afro-0brasileiro, de Ogum, orixá das armas, das ferramentas, ferreiro, defensor de escravos e seus descendentes.
Liberdade, trabalho, expressão religiosa e cultural conforme padrões étnicos. Ogum e Santo Antônio aproximam-se na devoção popular: se atuam ideologicamente de formas diferentes e em espaços próprios, a fé misturada incumbe-se de criar a imagem de Antônio-Ogum.
Assim, alguns movimentos sociais, originários de terreiros de candomblé na cidade do Salvador, reforçam o sincretismo, fazendo santos do catolicismo conviverem no pensamento do povo do santo – os adeptos das religiões afro-brasileiras.

As traduções do povo devoto fazem-se em estilos e em momentos diferenciados conforme apelos, sugestões, motivos, compreensões de um sagrado utilitarista, decorrente de necessidades imediatas de quem pede e crê.
Antônio é um santo querido por todos, disputado por Lisboa e Pádua a ponto de Leão XIIII proclamar que Antônio é il santo di tutto il mondo.
No Brasil, mais de 220 freguesias têm seu nome. É enorme a incidência de Antônio enquanto nome próprio. São muitas e diversas as maneiras de homenagear e perpetuar Antônio no meio do povo.

Em santas Missões povos converteu
Vossa língua santa
Que não pereceu
(Hino I)

A imponente Igreja de São Francisco recebe o povo em seu contexto barroco e convida ao convívio com espetaculares imagens da arte e da invenção do homem voltadas para a fé católica.
Lá, Santo Antônio, em altar do lado direito da nave central, altar de São Francisco de Assis, recebe visitas, orações, súplicas e agradecimentos diários; na terça-feira, entretanto, dia dedicado a Santo Antônio, o movimento é maior, iniciando-se às 6h, com missa, que se repete às 7h; às 15h e às 15.30h acontece à bênção simples, sem missa; às 16h, outra missa; às 17h outra bênção, do Santíssimo Sacramento e bênção da relíquia; ás 18h, finalmente, a missa mais esperada e frequentada, chamada missa da bênção ou apenas bênção.

É ritual que lota a igreja, que comove visitantes, turistas, apreciadores de obras de arte.
A frequência da missa é um espelho de como a fé em Santo Antônio está viva no povo devoto, de diferentes partes da cidade, de não menos diferentes olhares perante o altar que é saudado oferecendo-se moedas, pães ou então cumprimentando o santo no desejo de tocar sua relíquia. Como se tocando a relíquia tocasse Antônio; assim, o contato físico com matérias, formatos e cores adquire essa vocação simbólica de fé.
A missa é amplamente participativa. Canta-se, batem-se palmas, e dela emana uma alegre energia que emociona e comove pelos muitos preitos perante o sagrado.
Os devotos de Antônio desejam certamente nessa missa semanal estreitar cada vez mais sua relação com o santo.
É um alívio para o espírito e um espetáculo de religiosidade essa missa-benção das terças-feiras, momento marcante na vida da cidade do Salvador, da Igreja de São Francisco e sobretudo de quem participa desse ritual religioso e social, pois Antônio permanece forte marco do culto à vida.

Glorioso Santo Antônio
Sobre vossos devotos lançai
Vossas bênçãos carinhosas
Do céu as graças nos daí
(Gloriosa)

O clímax da benção é o recebimento da água benta, criando diálogos entre o devoto, o santo e a Igreja; se a água é fonte imemorial da vida, da fertilidade, a água benta fala das graças, das benesses, da purificação, da relação física da fé.
Antônio olha, de seu altar dourado, para seus devotos, para o povo; o olhar piedoso do advogado, do protetor; a voz a favor daqueles que pedem, que vêm agradecer, depositar ofertas sobre seu altar.
A alegria dos devotos quando saem da missa dizendo tomei banho é sem dúvida um estilo de se sentir abençoado, por receber quantidade de água benta que lave realmente o corpo e o espírito.
A tradição dos franciscanos de aspergir água benta nos fiéis desenvolveu nestes últimos a convicção de que por um bom tempo estarão protegidos. Por isso é grande a multidão que, de mãos espalmadas, fazendo o sinal da cruz, recebe a graça da bênção, um hábito já arraigado na cidade do Salvador.
Como a água benta alimenta o espírito e a esperança, o pão alimenta aqueles que aguardam nas portas da Igreja de São Francisco. Se o pão é fartura, também é o alimento simbólico do cristão, o alimento do espírito.
Os pãezinhos de Santo Antônio, distribuídos aos milhares, no dia 13 de junho, são guardados em casa, na farinheira para que não falte o alimento do homem. Santo Antônio é, assim, proteção, fartura, garantia da própria vida. Antônio, simbolicamente, um alimento da fé e da esperança, é, por isso mesmo, senão o mais popular no Brasil, certamente um dos santos mais recorridos por todos os segmentos sociais, que lhe atribuem poder e capacidade de intervir junto a Deus.

Essa linda esperança
Envolta numa alma pia
Seja aceita lá no céu
Por Antônio e Maria
(Hino I)

Após a missa, finalizada pela bênção com relíquia de Santo Antônio, água benta aspergida no corpo, vai-se viver outra festa que, a partir do entorno da igreja, ganha ladeiras, praças, bares, restaurantes, passando pelas vendas das esquinas com tabuleiros de acarajé, abará, cocada, bolinhos de estudante, entre outras delícias para os olhos e para o paladar espiritualmente em êxtase.
Talvez pela fama de casamenteiro, muitas pessoas marcam seus encontros com amigos ou namorados após a missa de Santo Antônio, notadamente a das terças-feiras, a das 18h. Já devidamente abençoados, os casais e os grupos vão beber cravinho, cerveja, protegidos por noites estreladas e tocados pela brisa da baía de Todos os Santos.
O grande encontro das terças-feiras ganhou notoriedade popular e é chamado de bênção, incluindo a bênção propriamente dita e todos os rituais sociais e lúdicos que se estabelecem noite adentro, além da Igreja de São Francisco.
O conceito da bênção é extensivo à comemoração, ao encontro, a oportunidades de ver e rever pessoas. Salvador veste-se de festa todas as terças-feiras, dia oficial de comemorar a vida.

Com afeto e ternura
Digo adeus por despedida
Ao glorioso Antônio
Nós ofertamos a alma e a vida
(Hino II)

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Tão doce, tão ritual, tão brasileiro: o arroz-doce

“O português com seu gênio de assimilação trouxera para sua mesa alimentos, temperos, doces, aromas, cores, adornos de pratos, costume e ritos de alimentação das mais requintadas civilizações do Oriente e do Norte da África. Esses valores e esses ritos se juntaram a combinações já antigas de pratos cristãos com mouros e israelitas (…)”. (Gilberto Freyre in Manifesto Regionalista. – 4ª ed. –. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1967. Pg. 50)

O conceito de globalização já estava em Gilberto Freyre, especialmente quando se tratava das comidas. Gilberto escolheu a comida como um dos seus mais estimados métodos para se interpretar o brasileiro.
O nosso colono oficial português já chega no Brasil com uma formação afro islâmica que estava presente na comida, na estética, no idioma, na música, na arquitetura; e, em tantos outros temas marcantes que determinariam as nossas características como povo.
Desta maneira, Gilberto sempre notabilizou o homem muçulmano na formação brasileira, e na construção da civilização Ibérica, principalmente nas bases culturais e sociais de Portugal.
Dessas tradições luso muçulmanas, chegam elaboradas técnicas culinárias, ingredientes, receitas; e a valorização estética das comidas e dos utensílios de mesa.
Tudo isso passa a marcar os nossos hábitos e preferências alimentares, e consequentemente a formação de nosso paladar. É o caso do tão querido e popular “roz bil halibi”, o nosso arroz-doce. Sobremesa do cotidiano, comum, que pode ser enriquecida com leite de coco, raspas de limão, gemas de ovos; e, muita, muita canela para enfeitar o prato, para dar gosto e cheiro.

As receitas tradicionais do arroz-doce da cozinha Magrebe traz também o maa al wared – essência aromática de água de rosas –; e o maa el zahar – essência aromática de água de flor de laranjeira –; o que adiciona aromas e sabores especiais às receitas. É uma assinatura da África muçulmana e mediterrânea.
Trago uma receita do roz bil halib do Norte da África que atesta uma sofisticada cozinha, coerente ao que há de mais contemporâneo e fashion na gastronomia globalizada.
O nosso arroz-doce nasce da tradição do norte da África, e se aproxima também de outros processos culinários onde se tem a mistura de leite com arroz e açúcar, como na milenar cozinha indiana, com o pongal ou makar-sankranti e o kheer, pratos oferecidos no festival Jyaishtha Ashthami.

Essas matrizes multiculturais que apresentam receitas com o uso de arroz misturado ao açúcar consolidam estilo regionais do doce, que no caso pernambucano se apresenta numa das suas características mais dominantes que é o farto uso do açúcar. Em geral, são preparos muito doces, dulcíssimos.
E o nosso arroz-doce, ainda quente, é pulverizado com a canela que exala o perfume do Oriente. Canela vinda do Ceilão, e da Índia.
Além disso a canela possibilita criar no arroz-doce elementos visuais, desenhos, numa estética para ser saboreada. Ainda, pode-se realizar desenhos impressos com o uso da técnica do ferro quente colocado sobre camadas generosas de canela.
Sem dúvida, nos cardápios familiares de Pernambuco, as receitas de arroz-doce integram os hábitos alimentares, e assim a formação e preferencio por aquilo que é doce.
Gilberto Freyre também era um apreciador declarado do arroz-doce feito com leite, baunilha, açúcar, e muita canela.

E assim, as formas e os estilos de se viver o arroz-doce aproxima e legitima essa comida tão doce e tão multicultural, como também multicultural é o culto a Santo Antônio.

RAUL LODY