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O doce da fruta tropical

Fruta da terra, símbolo do trópico, do ideal do sol, do calor, do mar azul. Paisagens paradisíacas que revelam novos sabores, odores, formas, e cores numa estética, inicialmente, exótica ao olhar estrangeiro.

“Uma fruta se dá nesta terra do Brasil muito saborosa, e mais prezada de quantos há (…) chamam-lhes ananases e depois de maduros têm cheiro excelente (…) outra fruta se criam numas árvores grandes, estas não se plantam nascem pelos matos muitas; está fruta depois de madura é muito amarela (…) chamam-lhes cajus, têm muito sumo (…) o caroço assado é muito mais gostoso que amêndoa (…)”

(Pedro de Magalhães Gandavo, 1576)

Sem dúvida, abacaxi & caju emblematizam o Brasil, como outras regiões desse lado do mundo, e pode-se, ainda, aliar a essa lista de tipicidade a tão celebrada banana. Yes! Temos banana. Muitas, em tamanho, formato e, principalmente, gostos variados. As frutas tropicais trazem um frescor nativo, e trazem também o sentimento de fartura, de natureza, de corpo nu e desvendado.

Unem-se a esses imaginários do que é tropical as aves, especialmente papagaios, aves que estão sob os ombros dos índios, ou na plumária sofisticada de diferentes adornos corporais. Penas colocadas sobre a pele, com pigmentos vindos do jenipapo e urucum, esse tão presente à mesa do brasileiro como o tão popular colorau, para dar cor, sabor, e, principalmente, identidade a comida.

O nosso urucum também é encontrado na Índia tropical, e integra-se a tantas outras especiarias de cores e gostos próprios que trazem sempre o “lugar”, o território nas memórias dos paladares. Assim, as memórias dos paladares, as memórias visuais e as memórias sonoras juntas dão um sentimento holístico dominante quando se fala de comida.

Ainda sobre as imagens ideais de um trópico que descobre-se comendo, especialmente, no caso as frutas que compõem cenários de natureza exuberante, repleta de pássaros coloridos.

“ (…)os gaviões também são muito destros e forçosos: especialmente os pequenos (…) que remetem a uma perdiz, e a levam nas unhas para onde querem (…) Papagaios há nestas partes muitos de diversas castas e muitos formosos (…) são variados e de muitas cores (…)”

(Pedro de Magalhães Gandevo, 1576)

 

 

Para o brasileiro _ o abacaxi _ fruta da família das bromeliáceas, rico em vitamina E, potássio, magnésio, cálcio e, principalmente, açúcar _ é fruta de se comer em casa, ou de garfo e faca nos restaurantes mais sensíveis aos sabores da terra.

Abacaxi in natura para ser comido olhando o mar. Abacaxi em compota, cristalizado, acompanhando assados ou mesmo com feijoada, como fruta de apoio, como informava Gilberto Freyre.
Abacaxi na batida, na caipirinha, e em tudo mais que leve: rum, vodca, pisco, ou a nossa tão estimada “branquinha”, a cachaça.

O caju junto com o abacaxi faz esse brasão do país tropical, ele é nativo da mata Atlântica, dá perto do mar e é bonito de se ver florido, repleto de cores, bom de comer-se também verde, o chamado maturí, como moqueca com dendê e temperos, uma delícia! Caju em passa, revelando ainda mais o doce da fruta; em compota; cristalizado; como vinho ou como cajuína; servindo como carne, sendo base para diferentes pratos salgados; como farofa da castanha assada e também especiaria para bolos como o pé-de-moleque, e para o doce de sangue de porco que é o “chouriço”, ambos desse Nordeste.

Frutas tropicais dessa terra, e de outras também tropicais, contudo, exóticas com a manga, o fruta-pão, a carambola, a graviola, a jaca, entre outras. Frutas do oriente, especialmente da Índia e da Indonésia, porém brasileiras por adoção, com amplo e extensivo cultivo e no uso à mesa.

Contudo, cada vez mais a mesa vem se tropicalizando por meio da adoção de frutas frescas, e frutas da época, no caso em especial o abacaxi e o caju, entre tantas. Vive-se, então, uma mesa de frutas multiculturais, da Europa, da África, da Ásia, da “terra”, muitas já abrasileiradas, tropicalmente brasileiras.

RAUL LODY

Mel de Engenho

O mel de engenho, também conhecido como mel de cana, melado, mel de furo, é um tipo de xarope denso obtido do caldo da cana – Saccharum officinarum – por meio da sua fervura, evaporação e purificação pela retirada da espuma, e esta etapa precede o processo de cristalização do açúcar.

Segundo Gilberto Freyre, no seu livro Açúcar (1969, p. 51-52):

[…] O mel de engenho – ou melado – que é o açúcar na sua primeira (…) encarnação como sobremesa, é como o chá: é preciso que de pequeno o indivíduo aprenda a saboreá-lo como ele deve ser saboreado. Lentamente e com colher. […]

O mel de engenho está presente em âmbito nacional nos diferentes preparos cotidianos e, em especial, no café da manhã e nos lanches, e forma hábitos e escolhas de sabores que fazem parte um dos temas de destaque dos nossos sistemas alimentares.

Alguns preparos muito simples e fáceis de serem realizados no dia a dia mostram o uso tradicional do mel de engenho por milhares de brasileiros:
• Farinha de mandioca misturada com mel de engenho, na proporção de 3 colheres de sopa de farinha para 1 de mel de engenho;
• Farinha de mandioca, mel de engenho e queijo curado ralado, na proporção de 3 colheres de sopa de farinha para 2 de mel de engenho e 1 de queijo ralado;
• Farinha de milho misturado com mel de engenho na proporção de 3 colheres de sopa de farinha para 1 de mel;
• Queijo coalho frito regado com mel de engenho;
• Batata-doce, cará, fruta-pão, aipim, inhame; cozidos na água e sal, e regados com mel de engenho;
• Frutas in natura, como bananas de diferentes tipos, regadas com mel de engenho;
• Garapa, bebida artesanal feita com água e mel de engenho, 2 partes de água para 1 de mel de engenho;
Além desses usos cotidianos, e tradicionalmente brasileiro, o mel de engenho na gastronomia contemporânea, em âmbito nacional e internacional, é uma presença que se amplia, cada vez mais, especialmente na composição estética do prato, como uma base para diferentes preparos salgados; e ainda como ingrediente para muitas receitas tantos doces quanto salgados.

Outras receitas com mel de engenho

Bolo de Melado (1)

Ingredientes:
• 300ml de melado de cana de açúcar (1 ½ xícara de chá)
• 3 ovos
• 3 colheres de sopa de manteiga ou margarina
• 150ml de Leite
• 600gr de farinha de trigo
• 1 colher de sopa de fermento em pó, caso sua farinha já contenha fermento não precisa adicionar mais

Modo de fazer:
1. Pré-aqueça o forno a 200°
2. Numa batedeira ou liquidificador, misture a manteiga, os ovos inteiros, o leite e o melado de cana. Bata até que a mistura fique homogênea; aí, então, acrescente a farinha de trigo e continue a bater até agregar toda a farinha. Agora adicione o fermento e misture-o a massa manualmente e de forma suave. Coloque a massa numa forma untada com manteiga, e deixe descansar por 10 minutos para o fermento agir. Coloque depois no forno (a 200 graus) e deixe assar por aproximadamente 45 minutos.

Broa de Melado (2)

Ingredientes:
• 600ml de melado
• 3 ovos
• 3 copos de farinha de fubá
• 2 copos de farinha de trigo peneirada
• 1 colher de sopa de fermento químico em pó
• ½ copo de óleo vegetal
• ½ copo de leite morno
• Erva-doce a gosto

Modo de fazer:
1. Numa tigela grande o suficiente para conter todos os ingredientes, adicione 500ml de melado e os ovos inteiros, e com uma colher de pau vá mexendo suavemente para agregar o melado aos ovos;
2. Depois, acrescente a farinha de fubá, misture; então, acrescente a farinha de trigo; continue a mexer até ficar uma mistura homogênea;
3. Agora adicione o leite morno, e depois o óleo; misture-o a massa;
4. Sempre faça movimentos circulares e suaves enquanto mexe;
5. Adicione a erva-doce;
6. Por último acrescente o fermento e mexa suavemente.
7. Unte uma assadeira retangular com óleo e polvilhe com farinha de trigo, antes de colocar a massa;
8. Coloque no forno pré-aquecido, e asse por aproximadamente 35 minutos.
9. Após retirar o bolo do forno, ainda quente, pincele a broa com o restante do melado; então, deixe esfriar para servir.

Molho de mel de engenho

Ingredientes:
• 120gr de mel de engenho
• 40 ml de aceto balsâmico

Modo de fazer:
• Misture o melado com o aceto e leve ao fogo. Deixe reduzir até ficar com espessura leve. Use após esfriar.
Nota: Este molho é indicado para saladas verdes como, por exemplo, as preparadas com alface, rúcula, endívia, chicória, entre outras folhas de sua preferência.

RAUL LODY

(Foto-instalação Jorge Sabino)

Fartes ou Fartens – o doce que é uma fartura!

“Tanto comas que te fartes,
E sem ser cousa de espantos,
De fartes, farta a barriga,
Festeja a festa dos santos.”
(R.C.M., 1877, p. 300)

 

Fartes, Farténs ou Fartéis, todos plurais de Fartem, foi o primeiro doce que desembarcou no Brasil, com a esquadra portuguesa de Pedro Álvares Cabral. Esse momento, do dia 24 de abril de 1500, ficou registrado na carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei D. Manuel: “Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartens (bolos), mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quási [sic.] nada; e se provaram alguma cousa, logo a lançavam fora.” (Dias, Vol.2, 1920-1924, p.89).

Os fartes são considerados de origem portuguesa, e aparecem nos registros sempre como doces a base de amêndoas e açúcar,  e especiarias podendo conter ovos, envoltos por uma massa de manteiga e açúcar, em que às vezes, cita-se a farinha de trigo. Entretanto, podem aparecer também enrolados em uma fina e alva folha de hóstia.

O Vocabulário Portuguez e Latino, de Raphael de Bluteau, 1728 (Tomo 4. p. 38) define Fártem como: “Tira de massa, que dobrada, envolve amêndoas pisadas, canella, cravo, & açúcar, conglutinados com miolo de pão ralado.”

Na descrição de Cascudo (1983: 343): Fartes “ […] outra ‘permanente’ nas delícias que ao paladar oferece a perserverança portuguesa no terreno da doçaria.” Cascudo (1983: 351) faz uma correspondência entre os Fartes trazidos Cabral e o fato dele ser originário da Beira, terra dos fartes. Entretanto, questiona se a iguaira servida era de fato portuguesa, devido à duração da viagem, e supõe que deve ter sido produzido a bordo, sem as especiarias, como Emanuel Ribeiro confirmou existir, com mais amêndoas e cidrão, e a massa. Cascudo também afirma ainda que no Brasil, os Fartes não mantiveram esse nome, “Dispersaram-se na multidão inominada e gostosa dos bolos de nata, pastéis de recheio de creme, com o invólucro liso ou folhado.”

O livro A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, de Salvador Dias Arnaut refere-se a Fartalejos, termo presentes no Cancioneiro em uma composição de autoria de Luis Anriques, de características judaicas. De acordo com o livro, Esteves Pereira suspeita que Fartalejos sejam os Fartes que descreve como empadas doces encapadas.

A pesquisadora Carmem Soares, em Ensaios sobre o Patrimonio Alimentar Luso-Brasileiro, 2014, pp.25-26, relata ter encontrado a receita de Fartes no primeiro manuscrito de cozinha portuguesa do séc. XVI, atribuído à Luis Álvares de Távora no Arquivo Destrital de Braga, documento que não tivemos acesso,  além dos demais títulos que serão abordados aqui.

A primeira receita de Fartes aparece a partir do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria publicado entre o final do séc. XV início do XVI. A mesma receita foi publicada novamente em A Arte Nova e Curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se occupaõ em fazer doçes, e conservas com frutas de varias qualidades, e outras muitas receitas particulares, que pertencem á mesma arte, livro de 1788, de autoria de José de Aquino Bulhoens (Fig. 1 e 2).

 

Figura 1

 

 

Figura 2

 

Nessa receita, o creme de açúcar, mel, amêndoas, gengibre, cravo, canela e água de flor de laranjeiras é espessado com farelo de bolo. A massa é produzida com manteiga, açúcar, farinha de trigo e ovo. A composição da receita ilustra muito bem os padrões alimentares da Idade Média, em que não havia um compromisso com uma combinação entre as especiarias e estas com os ingredientes, mas, uma sobreposição, uma vez que o que importava era exibir o valor econômico através dos pratos – nesse caso muito caro, com tantas especiarias importadas. O sabor ficava prejudicado em detrimento da aparência que, naquele momento, tinha muito mais valor. O bolo era uma produção demorada e trabalhosa que fazia parte do cardápio mais elaborado da nobreza. Lembrando que foi a partir da Idade Média que a cozinha se afirmou como elemento de distinção entre as classes sociais.

No livro O Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em todos os seus ramos, de R.C. M., 1877, p. 300, (Fig. 3) a receita de Fartes é identificada como Fartes de Espécies, e o creme contém além de açúcar e amêndoas, cidrão, cravo, canela e erva doce, e é espessada com pão ralado. Depois, os fartes vão ao forno envoltos em uma massa de manteiga, açúcar e certamente, alguma farinha para estruturar. Observa-se aqui uma adaptação da primeira receita, mais simples e menos dispendiosa.

 

Figura 3

 

Uma característica comum entre essas receitas é o tipo de medida utilizada para a orientação das quantidades: arrátel, quartilho ou quarta e escudela que cairam em desuso. O “arrátel” (da palavra árabe: al-ratl) era um padrão moldado em granito ou ferro fundindo, portanto, passível de variação, que o Sistema Português de Medidas incorporou desde a formação de Portugal. Definido pelo rei D. Manuel I, em 1495, como 459g, o arrátel se manteve em vigor até o século XIX, com a introdução do Sistema Médrico Decimal, quando passou a ser substituído pela libra. Já a “quarta” representava a quarta parte de um arrátel, enquanto a ”escudela” correspondia à medida de um recipiente de madeira redondo e raso.

Observa-se que os processos que envolvem a produção da receita também exigem um saber próprio. Na receita da Figura 1 e 2, pinga-se uma gota da calda no prato para verificar o ponto que se dá quando a gota não escorrer. Na mesma receita, para verificar o ponto do cozimento, polvilha-se a canela e aperta-se a massa com o dedo, e a massa não deve grudar mais. A verificação do ponto de cozimento da segunda receita é semelhante ao da primeira, utilizando pão ralado, ao invés de canela.

Outra receita antiga de Fartes de Especia (Fig. 4) remonta o séc. XVIII, e aparece no Livro de Receitas de Cozinha, Cosméticos e Mezinhas das Freiras da Visitação de Santa Maria, Lisboa, A.N.T.T., Manuscritos da Livaria, no 2403-426).

 

Figura 4

 

Inicia-se por um pré-praparo que corresponde à produção de um bolo de manteiga, sem adição de fermento para ser ralado, peneirado e misturado ao creme dos fartes. Como nas receitas anteriores, a calda inicial não sugere a quantidade de água que será levada ao fogo com o açúcar. A canela é medida pelo valor de um tostão e o cravo, o de um vintém. Despois do recheio frio, se faz a massa – que também não cita a farinha de trigo – que deve ser estendida muito fina e cortada em tiras estreitas. Pela primeira vez, aparece na receita a recomendação para a cocção no forno. Os pequenos fartes devem ser colocados em uma bacia polvilhada com farinha para serem levados ao forno.

No Livro de Receitas de Cozinha, Cosméticos e Mezinhas das Freiras da Visitação de Santa Maria, Lisboa, A.N.T.T., Manuscritos da Livaria, no 2403-426 aparecem mais três receitas de fartes: uma de Fartes com Ovos, outra de Fartinhos, e mais uma outra de Farteis apenas (Fig. 5). Uma característica interessante dessa receita é que já aparece uma especificação da calda em ponto de espelho. A receita apresenta cidra, cidrão, cravo, canela e cheiro, e o creme recebe pão ralado no final da cocção, mas não cita a massa para envolver o creme.

 

Figura 5

 

No Livro O Doce Nunca Amargou… Doçaria Portuguesa. História. Decoração. Receituário., de Emanuel Ribeiro, publicado pela prineira vez em 1923, e cujas receitas foram recolhidas de um manuscrito de 1834, intitulado: Livro da Razão sobre algumas particularidades pertencentes à Casa Real, e Covas, e Vida do Padre Pregador Fr. José Joaquim de Santa Rosa, monge de S. Bento, e secularizado por Decreto, do Sr. D. Pedro IV no ano de 1834. Nele, a receita de Fartes de Espécie apresenta mais precisão:

“Fartes de espécies

Tomarão 8 arráteis de açúcar em ponto de fio abaixo, e lhe deitarão 4 arráteis de amêndoas muito bem pisadas, e 1 arrátel de cidrão em bocadinhos delgados e pequenos; cravo, canela, erva-doce pouca, e ferve-se-á um pouco, e se tirará em seguida, o tacho do lume, e se deitará uma quarta de pão ralado por medida, e o sinal de estar feita essa espécie, é botar em cima da espécie uns pós de pão ralado, e pôr-lhe em cima o dedo a ver se fica enxuto, e se deita em prato para esfriar; tome-se então a massa feita com manteiga e açúcar e se vão fazendo os fartes, e feitos se mandam ao forno.” (pp. 119-120).

 

Alfredo Saramago e Manuel Fialho conseguiram recolher a receita de Farte copiada a seguir, no livro Cozinha Alentejana, de 1998, pp. 231-232. Na nota de rodapé os autores declaram que os Fartes são muito comuns em Évora e naquela região. De acordo com Garcia de Rezende, na Crônica de D. João II, citado pelos autores, para a festa de casamento de seu filho, D. João II ordenou que a população preparasse vários cestos de Fartens para o banquete.

Na realidade, Saramago e Fialho,  reproduziram naquele livro a mesma receita publicada em Doçaria dos Conventos de Portugal, de 1997, p. 147, apontada como pertencente ao receiturário do Convento de Santa Helena do Calvário de Évora.

 

“Fartens ou Fartes

Leve 500 gramas de açúcar a ponto de cabelo e deite depois 250g de amêndoas raladas e duas cascas de laranja. Ponha um cravinho, uma colher de café de canela e outra de erva-doce. Deixe ferver durante três minutos. Retire o talho do lume e deite 150g de pão ralado. Mexa muito bem. Faça uma massa com 300g de farinha, uma tigela de água 100g de manteiga e 2 gemas de ovo. Mexa muito bem até que fique pronta para tender. Tenda a massa e recorte com a carretilha à volta de um pires de chá. Ponha uma colher de sopa de de espécie no meio e dobre para fazer a forma de pastel. Frite em azeite e polvilhe açúcar e canela.”

Nessa receita, os fartes se apresentam como pasteis fritos no azeite e rolados em açúcar com canela. Mantem as mesmas características das receitas anteriores, diferindo, entretanto, na forma de redação, pois dá mais detalhes sobre o modo de preparo e precisão quanto às quantidades dos ingredientes utilizados.

 

Apesar da receita original ser considerada portuguesa, pode-se observar uma forte influência da cultura árabe, tanto na presença da receita da espécie (massa semelhante ao maçapão árabe) que recheia o doce quanto na profusão de especiarias, e até mesmo na massa que pode ter sido, inicialmente, uma massa folhada pela presença marcante da manteiga, coberta com açúcar. A tendência ao secretismo de receitas que vigorava nos conventos e palácios até o século XIX,  estimulando a mutilação de receitas e a ocultação de métodos e técnicas contribuíram para que muitas delas se perdessem ou, simplesmente, desaparecessem.

No Brasil, os Fartes podem ser encontrados ainda sob essa denominação, em Sobral, no Ceará. Entretanto, a receita praticada lá apresenta pouca semelhança com aquela trazida pelos portugueses.

 

 


 

VEJA RECEITA
de Fartes de espécie por Lucia Soares, clique aqui!

 

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Amêndoa confeitada

O Eid-e-Qorban é celebrado no final do Haj, a peregrinação até Meca, quando familiares e amigos vão visitar uns aos outros para tomar chá e compartilhar doces e, em especial, as amêndoas confeitadas – noql. Antes do islamismo, os afegãos celebravam o Ano Novo no vernal equinox – Equinócio de Março –, dia 21, onde há grande variedade de doces, e de amêndoas confeitadas, feitas para se aguardar a visita dos participantes da festa. As amêndoas confeitadas também têm um importante papel nos casamentos tradicionais Afegãs, pois simbolizam fertilidade e prosperidade.

 

Foto de Jorge Sabino

 

Pérsia (Irã e Iraque), Afeganistão, Turquia, Síria, Jordânia, Tunísia, Marrocos; Grécia, Itália, Portugal; assim esse doce viajou do Oriente e chegou na Europa como uma forma de presente e de bons votos para celebrar também os nascimentos, os batizados, e a Páscoa, e todos estes ritos estão relacionados com a fertilidade. Em Portugal, a amêndoa confeitada foi chamada também de confeito, quando à época do episódio citado na Carta de pero Vaz de Caminha, em 1 de maio de 1500: ‘Deram-lhe ali de comer, pão e peixe cozidos, confeitos, fartéis, mel, figos passados (…)’.

 

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Um bom doce é feito com colher de pau

Manifesto Colher de Pau

Pela salvaguarda das cozinhas regionais e tradicionais do Brasil, e com respeito aos acervos culinários que são também identificados nos conjuntos de objetos de madeira, metal, fibra natural trançada, cerâmica entre outros; conjuntos de objetos variados e fundamentais ao ofício de se fazer a comida e possibilitar a preservação das receitas, e ainda preservam a estética de cada prato e o seu serviço em diferentes espaços e ambientes sociais.

A comida servida à mesa, em banca, sobre esteira, sobre folha de bananeira, traz vivencias das muitas experiências culturais de comensalidade nos cenários das casas, dos mercados, das feiras, dos restaurantes, dos templos, entre tantos outros.

Pela segurança alimentar e principalmente pela soberania alimentar o “Manifesto Colher de Pau” quer valorizar cada objeto, implemento de cozinha, e rituais sociais de oferecimento de comida e bebida como forma de preservação do exercício dos saberes tradicionais e indenitários de famílias, regiões, segmentos étnicos, religiões; e, em destaque, a compreensão plena da importância técnica e simbólica de cada objeto.

 

Foto de Jorge Sabino

 

 

Assim, morfologia, material, função, trazem memórias ancestrais que são definidoras das peculiaridades das culturas e dos povos que são identificados em cada objeto. Objeto vinculado ao que se entende por “patrimônio integrado” no entendimento contemporâneo de patrimônio cultural imaterial.

Respeitar e manter estes acervos materiais nas cozinhas, e nos serviços, garantem os espaços de singularidade e de peculiaridade dos nossos sistemas alimentares de brasileiros, e os acervos significativos dos sabores, da construção dos paladares, ações que se dão no exercício das culturas.

Unir valores de sanidade nestes contextos complexos e patrimoniais devem ocorrer desde que se respeite as diferenças e características locais. Assim, devem-se buscar maneiras de mediar e realizar formas de higienização e de reposição de objetos mediante critérios sensíveis e particulares, para que desta maneira se possa respeitar e salvaguardar tão importantes acervos que formam a nossa identidade de povo e de Nação.

A substituição de uma colher de pau por outra de polietileno não é apenas uma “mera” substituição de colheres, é a substituição de uma história, de um saber, de uma técnica, e de um ofício que produz sabores, e principalmente referências de significados, nos contextos dos valores patrimoniais.

Pela preservação dos objetos culinários tradicionais, pelo diálogo com as regras da sanidade, e pelo respeito à diferença, a alteridade e a cultura.

 

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