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Pernambuco é de açúcar

Texto e fotos por Josué Francisco da Silva Júnior

Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br

 

Açúcar vem do sânscrito, mas foram os árabes que nos legaram as-sukkar, como foram eles também que nos transmitiram ár-raçif para nominar o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco, fundado no século XVI, sob a proteção de Santelmo, o santo dos marinheiros.

Independentemente das coincidências nas raízes linguísticas, foi aqui que, há quase 500 anos, teve origem sobre os massapês da Zona da Mata uma avançada “civilização do açúcar”, forjada na mão de obra de negros escravizados sob a dominação da elite branca da época.

Em Pernambuco, é quase heresia se fazer dieta de açúcar, já que, desde tempos imemoriais, a economia do Estado foi alicerçada sobre o produto. Foi a amálgama que edificou Olinda e a transformou, do alto das suas colinas à beira-mar, numa pequena Lisboa dos trópicos. Era o “ouro branco” cobiçado pelos ingleses no Saque do Recife, em 1595 e, no século seguinte, pelos holandeses da Companhia das Índias.

Até a paisagem do Recife não seria a mesma sem o açúcar. Basta olhar as gravuras ou as fotografias que surgiram a partir do Oitocentos para se ver o enxame de navios, barcas e alvarengas nos rios e cais da cidade carregados de sacas do produto, marca registrada que perdurou até pouco tempo atrás.

Embora socialmente injusta e “amarga”, a lavoura da cana-de-açúcar, da qual muito já se falou para o bem e para o mal, deu origem a uma rica culinária constituída por doces bem elaborados e dezenas de bolos opulentos, como o Souza Leão, o Cavalcanti, o Guararapes ou o Luiz Felipe, para citar uns poucos. Aliás, os bolos pernambucanos vieram dos engenhos de açúcar e da ebulição das suas cozinhas, como bem representou o genial Cícero Dias, no seu Engenho Noruega. Têm nome, sobrenome, procedência e, antes mesmo de existir denominação de origem e identidade geográfica, já podiam ser rastreados. É bolo Souza Leão do Engenho São Bartolomeu, do Noruega ou ainda do Jundiá ou do Batateiras, somente para falar do mais famoso, do bolo símbolo da independência gastronômica brasileira, como disse Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, pesquisadora de gastronomia. O Souza Leão de hoje em dia está mais comedido, mas já foi exagerado: massa de mandioca peneirada várias vezes, leite de seis cocos, muito açúcar e manteiga e, pasmem, 18 gemas! Uma verdadeira revolução promovida pelas quituteiras da casa-grande, como não bastassem as tantas revoluções que aconteceram aqui. Essa rebeldia não se deu apenas com o Souza Leão, mas também com o Luiz Felipe, de mesma estirpe, com o seu indefectível ingrediente— o queijo-do-reino —, uma das mais bem-sucedidas explosões do dual doce/salgado.

 

Bolo Souza Leão - foto de Josué Francisco da SIlva Junior
Bolo Souza Leão – foto de Josué Francisco da SIlva Junior

 

Outros bolos icônicos merecem destaque, como o bolo-de-rolo e o bolo-de-noiva-pernambucano, diferentes de tudo no gênero. O primeiro é feito a partir de uma massa intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas, com cuidado para que o doce não ultrapasse a massa. Os puristas admitem apenas a goiabada como recheio e torcem o nariz para recheios surgidos recentemente, como doce de leite ou chocolate. E ai de quem disser a um pernambucano que bolo-de-rolo é rocambole! É quase uma declaração de guerra. Já o bolo-de-noiva-pernambucano possui massa densa e escura, proveniente da mistura de doce de ameixa, frutas cristalizadas, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho Moscatel ou Porto e especiarias, diferente dos bolos de casamento de massa clara do resto do país. Há quem coloque até queijo-do-reino e goiabada. E ainda é coberto por uma farta camada de glacê-mármore feito de açúcar-de-confeiteiro e limão. O bolo-de-noiva-pernambucano possui influência direta do Christmas Pudding britânico, como atesta o antropólogo Raul Lody. Não se imagina que uma iguaria tão complexa tenha sido herança de um povo cuja culinária não possui lá boa fama. Mas, sim, veio dos ingleses, cuja enorme colônia se fixou em Pernambuco a partir do século XIX, e deixou também o bolo-inglês, de constituição mais simples, porém não menos saboroso.

 

Bolo de noiva pernambucano - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Bolo de noiva pernambucano – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

Gilberto Freyre, sociólogo e autor do célebre Açúcar de 1939, afirmava que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, toucinho-do-céu, somente para mencionar alguns.

Em Pernambuco, não basta ser caldo de cana, tem que ser com pão-doce porque açúcar pouco é bobagem. Comida salgada tem que ter doce: pastel de carne moída aqui vira pastel-de-festa e com açúcar! Queijo de coalho come-se com mel de engenho. O que seria da cartola, a clássica sobremesa de banana Prata e queijo de manteiga, sem o açúcar abundantemente polvilhado por cima com canela?

Andar pelas ruas do Recife é ter os ouvidos adoçados pelos pregões “Japonêêêêês!” vindo do vendedor do mais famoso dentre os doces de tabuleiro; ou “Mé nôôôôvo de ingeeeeem!”, do vendedor de mel de engenho na lata, ofício que se perdeu no tempo para sempre. E os doces populares? cocada, pixaim, sambongo, entre muitos outros trazem a grife africana, como toda a cozinha dos engenhos. Ainda hoje, uma volta nas feiras livres pode-se, com sorte, esbarrar numa banca de doces com os incomparáveis quebra-queixos ou chupar cana pura cortada em roletes enfiados em talas de bambu. Sabores de infância que quase não se veem mais.

 

Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…
(Trem das Alagoas, Ascenso Ferreira)

 

…já dizia o gigante Ascenso Ferreira no trajeto de trem pela Mata Sul Pernambucana. Diga-se de passagem que Ascenso junto com João Cabral de Melo Neto foram os poetas que melhor traduziram os canaviais numa verdadeira sociologia em forma de versos.

 

Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
(O Vento no Canavial, João Cabral de Melo Neto)

 

Bebida em Pernambuco vem da cana-de-açúcar e atende por nomes diversos: cachaça, aguardente, caninha ou pinga. Evidentemente, também é patrimônio estadual. E não sem razão, afinal aqui foi o seu primeiro centro produtor e hoje muitas marcas famosas saem dos alambiques distribuídos do Litoral ao Sertão. Sabia que a primeira cachaça industrializada do país foi a Monjopina, do Engenho Monjope, de Igarassu, em 1756? Um raro exemplar dela está lá no Museu da Cachaça, em Lagoa do Carro, a maior coleção do Nordeste, com mais de 12 mil marcas.

As mudas de cana chegaram com as caravelas, porém há certa controvérsia em torno do surgimento do primeiro engenho de açúcar, se em São Vicente ou na Ilha de Itamaracá, no entanto é indiscutível que uma das usinas mais antigas em funcionamento no Brasil é de Pernambuco — a Petribu — moendo desde 1729, quando ainda era engenho. É dela o primeiro açúcar demerara comercializado no país (demerara é aquele açúcar grosso com gosto de melaço, cujo nome se originou da região do mesmo nome na nossa vizinha Guiana). E falando em produtos de engenhos, “rapadura é doce, mas não é mole não!” Vem do Sertão a melhor. Sertanejo que se preza come com farinha para dar sustância. Duas cidades brigam pelo título de Capital da Rapadura do estado, Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo, ambas com seus canaviais espalhados pela Serra da Baixa Verde.

Açúcar e frutas nativas andam de mãos dadas. Caju, umbu, ubaia, pitanga, guabiraba e muitas outras podem ser comidas frescas, mas têm que virar doces, licores e compotas, “tudo à moda de Pernambuco”. Caju é doce de praia, feito em calda ou em passa, antigamente colocada para secar nos telhados das casas de pescadores. Umbu ou imbu, como se diz no interior da região, é doce sertanejo e a fruta dá até uma bebida, a saborosa umbuzada feita com leite. Da guabiraba, frutinha parente do araçá e cada vez mais rara na Zona da Mata, se faz o doce símbolo de Paudalho e que só se come uma vez no ano, por conta da safra curta. Tem até doces de Carnaval, uma das nossas festas mais afamadas, que o digam os filhoses de calda translúcida e os jetones coloridos.

Lembrando de festas, o São João é o palco principal de todos os bolos, doces e afins pernambucanos: canjica, munguzá, manuê, bolo de macaxeira, bolos de milho de todos os jeitos, arroz-doce e mais uma infinidade de guloseimas. Um parêntese deve aqui ser aberto para reverenciar o inigualável Pé-de-moleque pernambucano (há outros bolos e doces diferentes com esse mesmo nome Brasil afora), um bolo escuro de massa de mandioca no qual se adicionam café, castanha-de-caju, erva-doce, canela e cravo-da-índia como ingredientes. É o rei das mesas do mês de junho e já impressiona pela cor. E pensar que a elite imperial não apreciava porque era comida de escravizados!

 

Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior
Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

No Agreste, a cidade de Pesqueira floresceu com a indústria de doces, dando origem a um polo doceiro famoso que se espraiou pelos Vales dos Rios Moxotó e Pajeú. Em Pesqueira, há ainda o Museu do Doce, instalado no prédio da antiga Fábrica de Doces Rosa. Também Bezerros, com suas dezenas de pequenas fábricas de nego-bom de banana e mariola de goiaba, frutas vindas dos brejos de altitude, as regiões de microclimas singulares do Semiárido. A vila de Poço Fundo, em Santa Cruz do Capibaribe, merece destaque pelos doces que são patrimônio do município e que deu origem a um festival bem conhecido na região. Já no Alto Sertão do São Francisco, a bacia leiteira de Afrânio ganhou notoriedade pela fabricação de um doce de leite branco especial comercializado em barra, um sucesso até no vizinho Piauí.

O açúcar também faz parte da história de vida das mulheres pernambucanas desde sempre, como Dona Menininha, doceira de Agrestina, que é patrimônio vivo de Pernambuco. Sabem por quê? É a rainha única do alfenim (de al-fanid, novamente os nossos árabes…), o doce que toma forma de tudo o que a imaginação pode proporcionar. Dona Ceci Araújo e sua família guardam a sete chaves a receita do doce de laranja-da-terra, que fez a fama da bela e fria Triunfo. Segredos também são guardados pelas boleiras tradicionais do Recife, cujas receitas estão nas famílias há gerações. Dona Fernanda Dias comanda a mais conhecida confeitaria da capital pernambucana e produz iguarias exemplares, como o bolo-de-rolo mais perfeito da cidade, hoje espalhado por todo o Brasil. As filhas de Dona Leoni Asfora, Jane e Eliane, são responsáveis pela manutenção da qualidade de um dos bolos-de-noiva mais desejados do Recife, cuja receita herdaram da sua talentosa mãe. Ainda bem que existem as filhas e netas preocupadas em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, que o digam Dona Rita Pereira e sua família, que heroicamente resistem na busca das guabirabas pelas chãs dos tabuleiros de Paudalho, para a feitura do raro e excepcional doce.

 

Cartola - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Cartola – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

O açúcar em Pernambuco está entranhado não apenas na gastronomia e nos bens patrimoniais e culturais, mas muito além disso, está profundamente enraizado na formação do seu povo, na sua economia e na influência que o Estado teve sobre toda a Região ao longo dos séculos. “Sem o açúcar… não se compreende o homem do Nordeste”, resumiu sabiamente Gilberto Freyre.

 

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Texto modificado e atualizado originalmente publicado em Comida com História (2022).

 

 

Doce intimidade - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

Doce intimidade

“O menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; e lambuzar-se na geleia de araçá ou goiaba; e brincar com os moleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no (Menino-Deus) muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces”. Diz Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala.

Estas observações de Gilberto Freyre mostram que muitas relações sociais estão fundamentadas nas representações e nas seleções alimentares, nesse caso com ênfase no açúcar, um alimento fundador de uma sociedade brasileira, complexa, multicultural e multiétnica.

Assim, a nossa identidade alimentar é muito marcada pelo doce, numa afirmação das nossas escolhas para comer e beber; e, certamente, na construção das diferentes maneiras de manifestar soberania alimentar.

Esta intimidade e escolha do brasileiro pelo açúcar, açúcar da cana-de-açúcar, recupera uma larga história social e econômica que faz parte de uma base verdadeiramente civilizatória; e, ainda, formadora das nossas escolhas alimentares.

Sem dúvida, o brasileiro gosta, gosta muito, do que é doce. Há um profundo valor simbólico no açúcar, nas suas mais diferentes maneiras de manifestar as possibilidades de estilos alimentares, e que encontram formas criativas e tradicionais de buscar no que é doce o prazer e a alimentação.

 

 

Uma identidade nacionalmente doce se fortalece nos seus hábitos alimentares e nas suas escolhas soberanas do que comer. São muitos valores agregados aos significados do que é doce, e as projeções ampliam-se em adjetivos, tais como: você é um doce; como é doce este lugar; vou te dar um doce; entre outras maneiras de trazer o imaginário do doce nas relações sociais, e com ele o açúcar.

Também, esses valores determinam o que é doce num conceito não apenas alimentar e nutricional, mas num conceito com fortes bases filosóficas e ideológicas.

Há uma presença evidente nos muitos hábitos, e nos sistemas alimentares do brasileiro, uma espécie de intimidade e funcionalidade com o açúcar; e ele está presente na vida de várias formas: açúcar refinado, o que é mais comum para adicionar e complementar comidas e bebidas; rapadura, mel de engenho ou melaço; entre outras.

Tão nosso e tão brasileiro é a mistura da farinha de mandioca com o açúcar ou pedaços de rapaduras, numa realização culinária inicialmente lúdica, mas significativa no que se refere as complementações alimentares das dietas do dia a dia de milhares de brasileiros.

Farinha com açúcar em muitos casos é uma dieta para matar a fome de muita gente. Também se pode adicionar água a esta mistura, é o tão conhecido chibé, utilizado principalmente na alimentação de crianças. É a saciedade proporcionada pela água com a farinha de mandioca.

Transitar pelo açúcar é passar pelas suas muitas possibilidades para atender as necessidades alimentares e nutricionais, que é uma forte recorrência da própria história civilizatória da cana de açúcar na construção dos nossos paladares e dos nossos conceitos culturais do que é doce.

Assim, trazer o açúcar nos doces e nas bebidas artesanais é trazer um tipo de satisfação e realização que a nossa boca entende por doce. Neste mesmo imaginário tão amplo e geral nos nossos sistemas alimentares, liga-se o conceito e o sentido simbólico do que é doce com o sentido simbólico do que é bom.

Quem nunca comeu um punhado de açúcar para ludicamente se adoçar, entre as muitas experiências na conquista do que é doce, subjetivamente o doce é para comer e para manifestar alteridade.

 

 

Raul Lody

Caju e seus doces sabores

O cajueiro Anarcadiáceas,, apresenta-se com quinhentas espécies conhecidas, entre elas a Anarcadium Occidentale L., considerada como uma árvore quase sagrada no Brasil, na Mata Atlântica do Nordeste. Muitos dizem que o caju é a fruta mais brasileira de todas.

Além do consumo da fruta in natura há muitos outros aproveitamentos na culinária enquanto doce, vinho, castanha assada, na receita de bolos como o pé-de-moleque, um bolo que integra a mesa festiva do ciclo junino.

Além das formas doces: em calda, como passa destacando o açúcar da fruta, a tão celebrada passa de caju, está ainda em pratos salgados, destacando-se a famosa moqueca de maturi.

As bebidas feitas de caju também ampliam possibilidades gastronômicas e comerciais como a conhecida cajuada – suco de caju, ou na maneira industrial a cajuína e o vinho de caju, além do licor e outras criações no artesanato culinário da fruta.

 

cajueiro Museu do Açúcar e Doce
Cajueiro, pintura de Albert Eckhout, século XVII, Museu Nacional da Dinamarca, na foto by Jorge Sabino

 

Como um exemplo de doce tradicional, trago o doce de caju à moda de Pernambuco

“Escolhem-se cajus, que não estejam muito maduros, e que sejam sem mácula, e que devem ser descascados com uma casca de marisco, de modo que se tire toda a pele, e os talos, para que o doce não fique preto; piquem-se com um palito, extraindo-se metade do sumo, depois desta operação fervam-se em calda, e logo que tenham fervido, retire-se todo o doce do fogo e feixe repousar até o dia seguinte, a fim de ficar a fruta bem repassada na calda. Depois torna a voltar tudo ao fogo, para tomar o competente ponto. Retira-se, e guarde-se em vasilhas.” (Açúcar, Gilberto Freyre)

Raul Lody

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Bolo Recife: um bolo-homenagem

Pode-se dizer que Pernambuco tem uma forte relação com a criação de bolos. Bolos que trazem memórias ancestrais ibéricas, e bolos que são reinventados para formarem novas memórias.

O bolo sempre acompanhou a história de Pernambuco, pois recebe nomes de lugares, de engenhos de açúcar, de famílias; marcam datas históricas; e revelam assinaturas, de doceiras e doceiros, de famílias ilustres à época da criação da recita do bolo.

Assim, os bolos marcam a vida de uma sociedade marcada pelos contextos dominantes da cana de açúcar enquanto verdadeiras marcas heráldicas. Os bolos são quase brasões feitos de trigo, mandioca, ovos, leite, açúcar, diga-se muito açúcar; frutas frescas e/ou secas; e especiarias do Oriente.

bolo Recife
Foto de Jorge Sabino

O bolo no Nordeste é principalmente
uma invenção para expressar
os sabores e as estéticas dos trópicos

Bolos para exibirem o glacê “mármore”, feito à base de açúcar e cítricos. Bolos para serem apreciados no dia-a-dia. Bolos para as celebrações dos santos de junho, com receitas com muito milho e canela.

Destaque para Gilberto Freyre que em 2020 celebra 120 anos de nascimento, e assim, do seu livro “Açúcar” (1939), trago alguns dos muitos nomes de bolos que marcam um sentimento nativo pernambucano.

Bolos nomeados como pessoas: bolo Cavalcanti, bolo de milho D. Sinhá, bolo padre João, bolo D. Luzia, bolo Souza Leão, bolo Souza Leão – Pontual, bolo D. Pedro II, bolo de mandioca à moda Dr. Gerôncio.

Bolos nomeados como lugares: bolo Guararapes, bolo de bacia Pernambuco, bolo paraibano, bolo de rolo pernambucano, bolo brasileiro, bolo Souza Leão à moda da Noruega.

Há outros bolos com nomes diversos como: bolo Divino, bolo de São Bartolomeu, bolo engorda-marido, bolo de São João, bolo Republicano, bolo treze de maio.

Trago um estudo de caso que vai além do livro “Açúcar”. É o bolo Recife, um bolo-homenagem à capital pernambucana. Tradicionalmente mantém a forma circular, que é características dos bolos caseiros e das padarias. Ainda, pode ser apresentado no formato retangular ou de “caixa”, e com recheio de doce de ameixa. 

É um bolo para o cotidiano, para acompanhar o café ou chá, ou mesmo acompanhar um generoso pedaço de queijo. Sem dúvida, o bolo acompanha a vida pernambucana.

Raul Lody

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Pastel de Festa

Uma receita dita tradicionalmente pernambucana é o pastel de festa, aquele feito de massa folheada. Porém estes pastéis são verdadeiros continuadores de uma outra receita que é a pastilla e/ou bastilla, e ainda bisteyaa, o que afirma como é próxima e fundadora a cozinha Magrebe das nossas cozinhas, herdeiras da civilização do açúcar.

Foto de Jorge Sabino

Recheados de carne bovina moída, bem temperada com cominho, após assados, são polvilhados de açúcar. Simplesmente deliciosos! No caso da pastilla ou bisteyaa, como são conhecidos pelos povos do Norte da África, ele é tradicionalmente feito de massa filo, e recheado com carne de pombo, e depois de assado, é pulverizado com açúcar.

Em Pernambuco, as etnografias mostram que os recheios dos pastéis de festa são feitos de carne de boi, de porco ou de galinha. Há uma tendência de escolher a carne de porco, possivelmente por causa da especial carne de porco preto nas receitas portuguesas. Segundo, D. Magdalena Freyre, mulher de Gilberto Freyre, na sua receita de pastéis de festa, servidos nas celebrações familiares de Natal, há o uso da carne de porco para o recheio.

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Bolos de Pernambuco – Interpretações em Gilberto Freyre

Que o brasileiro se identifica com o doce é um fato real, simbólico, e também civilizador por meio do açúcar processado da cana sacarina. E assim muitas receitas mostram como o entendimento do que é doce funciona em cenários da nossa história multicultural, que reúne receitas em abundância conforme os conceitos dos povos do Ocidente e do Oriente.

Com certeza, o brasileiro se identifica à mesa com as comidas doces. Possibilidades de encontros ancestrais e fundamentais com a nossa própria formação cultural, que se dá nas experiências com os muitos preparos feitos a partir do açúcar; açúcar da cana de açúcar.

Ainda nestes ambientes do consumo de doces em distintos momentos da vida cotidiana, ou para marcar celebrações especiais, há um destaque merecido para uma base feita de trigo, ovos, leite e açúcar, o nosso tão estimado bolo.  Muitas variações atestadas nas receitas; muitas que nós conhecemos, pois estão na formação dos nossos hábitos alimentares, na construção dos nossos paladares de brasileiros.

E para ampliar estas leituras tão doces sobre os bolos, trago a obra clássica de Gilberto Freyre, “Açúcar” de 1939. O livro é uma verdadeira celebração aos bolos, quando o autor mostra mais de 50 tipos diferentes de bolos tradicionais de Pernambuco.

E para viver estes bolos patrimoniais, Gilberto afirma um sentimento plural e complexo sobre as relações culturais e gastronômicas com o doce e, desta maneira, declara um estilo de interpretar o que chega do açúcar e, em especial, os muitos bolos da memória e da sabedoria doceira de Pernambuco.

 

 

No livro “Açúcar”, diz Gilberto:

“Pode-se falar de um paladar brasileiro histórico e é possível também tropical ou ecologicamente condicionados; e como tal, ao que parece predisposto a estimar o doce e até o abuso do doce (…). Um doce o da preferência brasileira, como que barroco, e até rococó (…) é a arte mais sensual da sobremesa (…)”.

 

 

 

Gilberto reúne no seu livro Açúcar, a partir de seu olhar etnográfico para um acervo de receitas, a grande ocorrência de tipos e de vocações autorais dos bolos que marcam um trajeto e um retrato social e regional de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil.

Para Gilberto, cada bolo é muito mais do que uma receita.  Ele, o bolo, traz uma variedade de temas, de personagens, de localidades, de santos de devoção, entre tantos outros motivos.  Cada bolo tem a sua individualidade, e marca, e assim constrói seus territórios de afetividade, de celebração, de religiosidade, de homenagem. Cada bolo é certamente uma realização gastronômica de estética e de sabor, e na sua maioria traz ingredientes nativos, “da terra”, mais uma maneira de atestar identidade.

Assim, bolo São Bartolomeu, bolo Divino, bolo São João, bolo Souza Leão; bolo Souza Leão à moda da Noruega, bolo Souza Leão-Pontual, bolo de milho D. Sinhá; bolo de milho Pau-d’alho, bolo Guararapes, bolo Paraibano, bolos fritos do Piauí; bolo de bacia à moda de Pernambuco, bolo de rolo pernambucano, entre tantos.

O bolo traz uma intenção, uma assinatura, uma receita; uma intenção pessoal ou coletiva, regional.  Ele marca o terroir do doce em Pernambuco.

Também o significado de um bolo é repleto de valores familiares, de festas, de ritos de passagem; dos prazeres de se viver o milho, a mandioca, o chocolate, as frutas, os cremes; as coberturas de açúcar e frutas cítricas com a técnica do “glacê mármore”, branco e compacto, uma verdadeira delicia de cobertura, e se o bolo for o de frutas secas mergulhadas no vinho do Porto ou Moscatel, com a estimada receita de “bolo de noiva”, uma releitura do bolo de frutas inglês, um bolo do tipo “bolo-presente” para festas e celebração.

Nestes contextos, o bolo de rolo passa a marcar Pernambuco, como o acarajé marca a Bahia, pois tem uma forte relação com as populações, seus costumes, suas preferências de sabores que se dão em bases étnicas, históricas e sociais.

 

Foto de Jorge Sabino

 

Este tipo de “bolo de rolo”, diria midiático, é uma interpretação, a partir dos anos 1950, de uma confeitaria do Recife, pois a base está na torta do Azeitão de Portugal, com a massa do tão conhecido pão de ló e o recheio de doce de amêndoas, que em Pernambuco recebe o recheio com doce goiaba.

Uma torta, segundo a confeitaria tradicional; é um bolo para Pernambuco. É a torta que virou bolo e assim recebeu uma devoção nativa que socializou este doce e, em contextos da globalização, como um quase Pernambuco à boca.

E agora, em junho, é o tempo dos bolos a base de milho e mandioca. São os bolos para festejar os santos de junho, Antônio, João e Pedro.   Santos populares que são lembrados à mesa, e cultuados nas memórias dos paladares como verdadeiros rituais gastronômicos dedicados às devoções dos sabores.

É tempo das comidas de milho, pois se navegar é preciso, celebrar as nossas histórias a partir das nossas memórias de paladares também é preciso.

 

Raul Lody

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A beleza do doce. Sobre a estética do açúcar

Para o brasileiro, o doce é um tema fundamental, pois a nossa história como povo é marcada e adoçada com o açúcar da cana sacarina.

Sem dúvida, o brasileiro gosta e se identifica no doce. A designação doce vai além da comida, ela integra as nossas relações sociais, pois é comum dizer:  você é um doce; que seja doce (…); entre tantas outras maneiras de relacionar o doce com emoção e afetividade.

Há, sem dúvida, uma formação cultural que orienta as escolhas do que é doce no paladar brasileiro; diga-se nos muitos paladares, e também nos estilos de interpretar aquilo que é considerado doce ou muito doce. Assim, experimentamos   diferentes usos e significados do “doce”.

O sabor doce está no cotidiano das nossas casas, está nas receitas familiares. O doce está na preservação e na invenção permanente que faz das cozinhas verdadeiros espaços de memória e de adaptações; e também espaços de expressões estéticas e autorais.

Ainda, o doce é um símbolo de celebração. Cada tipo de doce marca determinado tempo de festa porque está no doce uma memória coletiva relacionada com as sociabilidades.

Quase sempre entorno de um doce são firmadas muitas celebrações e rituais que definem os novos papéis sociais de homens e de mulheres. Batizados, casamentos, aniversários; festas de santos; ciclos como o junino, o natalino, o carnavalesco; entre tantos outros.

Por tudo isto, o doce deve ser “bonito”, e a sua imagem, cor e textura devem revelar referências coletivas, e/ou ainda interpretações pessoais que constroem um conceito particular sobre o que se considera bonito.

Interpretar um doce é um momento muito especial. Inicialmente ele é desejado, depois conquistado, e finalmente entra em contato com a boca; e, com certeza, antes, entra em contato com o espírito.

Assim, seja o doce feito em casa, em uma confeitaria especial, onde o objeto-doce estará quase glorificado na vitrine para um texto visual de adoração; aí está marcada a essencialidade do próprio doce na sua vocação de seduzir e emocionar.

A intenção estética, beleza do doce, começa já na sua preparação, nas escolhas das complementações com os materiais, e não só o açúcar, tais como papéis especiais, flores, e outros itens da categoria “enfeites”, que vão muito além de um mero enfeitar, pois tudo deve emocionar quando se está diante de um doce.

Dentro destas relações simbólicas e etnográficas do doce, trago Gilberto Freyre para referenciar e celebrar o açúcar, porque Gilberto sempre encontrou no doce regional, no caso do Nordeste, um texto iconográfico artístico, e que certamente busca a beleza.

Uma beleza que identifica a mundialização lusitana, o uso das especiarias do Oriente; as invenções medievais e conventuais; as maneiras como se traduziu o doce pelo olhar e criação afrodescendente no Brasil.

 

 

Gilberto Freyre no livro “Açúcar” (1939) trata da doçaria a partir de um foco privilegiado sobre o Nordeste, onde certamente o doce é mais doce, isto por causa de motivos sociais, econômicos e culturais, pois há uma verdadeira civilização do açúcar.

Por exemplo, aqui, em Pernambuco os doces de fruta em calda são dulcíssimos, e seduzem exibindo as suas cores tropicais, o que faz o ato de comer ser iniciado com os olhos, literalmente “comer com os olhos”. É o caso do doce de goiaba, que muitas vezes é acompanhado de um pedaço generoso de queijo de coalho, é um encontro quase divino.

 

Diz Gilberto em “Açúcar”:

 “(…) arte tradicional do papel recortado para enfeite de doces e bolos, quer em pratos ou travessas ou bandejas, quer em tabuleiros (…). O livro Casa-Grande & Senzala que primeiro pôs em relevo essas perícias de velhas e genuínas doceiras. Perícia quase rival da das rendeiras. Tais doceiras como artistas, não consideravam completos os seus doces ou seus bolos sem esses enfeites, nem dignos os mesmos doces e bolos, dos gulosos mais finos, sem assumirem formas graciosas ou simbólicas de flores, bichos, figuras humanas, figuras que no Brasil deixaram por vezes os clássicos, europeus, para se tornarem os românticos, da terra.”

Com certeza, todos trazemos nossas referências mais íntimas, pessoais, dos nossos doces, e assim revelo, aqui no Recife, que o meu preferido é a rabanada tenra, inundada de vinho do Porto, a qual chamo de “rabanada bêbada”, e só vale àquela feita no restaurante Leite.  Já no Rio de Janeiro, adoro o bolo de pão, um inventivo reaproveitamento do pão feito a partir de tudo que a cozinha possa oferecer no momento: bananas, uvas-passas, cravo, canela; e só será o melhor se eu comer em casa.   Na minha querida Lisboa, o arroz doce servido em tigela de barro da Confeitaria Chinesa é o melhor.

Cada doce tem uma história, uma imagem, um espaço que funciona como seu cenário social e simbólico, e são estes contextos que constroem as memórias e os desejos para que o doce ganhe o seu lugar de sabor e a sua posição de adoçar as emoções.

E o doce será mais doce se for bonito.  A estética criada a partir do açúcar é uma forma de expressão fundamental para interpretar os desejos pessoais, íntimos, e também patrimoniais.

 

Raul Lody

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