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Biscoitos do Nordeste: bons de ver e bons de comer

Sem dúvida, para a confeitaria e a panificação a categoria biscoito torna-se um campo plural e diverso que apresenta inúmeras possibilidades de receitas, de tipos, e certamente de sabores. Isto também irá atestar as possibilidades dos ingredientes conforme cada terroir.

Provavelmente as primeiras massas de biscoito foram produzidas no século XVII, na França, para a fabricação do “biscoito do rei”, embora outras referências tragam informações sobre o amplo ciclo das Grandes Navegações realizadas por Portugal, onde alguns tipos de biscoitos especiais tornavam-se o principal alimento durante estes processos de longas viagens pelos oceanos, que se pode datar no final no século XV.

É importante observar que o biscoito tornou-se um alimento do cotidiano já há muito tempo, normalmente um biscoito doce que está presente em diferentes tipos de refeições, para atender aos mais diferentes desejos, interesses e paladares.

No caso brasileiro, vale destacar que as muitas possibilidades de biscoitos que são oferecidos nas confeitarias, padarias, feiras e mercados populares, possibilitam um acesso às muitas receitas, que ganham com o tempo suas tendências regionais, autorais. E assim suas receitas marcam a identidade de doceiras, de confeiteiros; e de estabelecimentos em que estes produtos são comercializados.

No caso do Nordeste, são inúmeros os biscoitos que seguem as mais tradicionais receitas, e oferecem identidade para esse verdadeiro valor patrimonial na cultura alimentar da região.

Dentre essa tão rica tipologia, quero destacar o tão querido e popular bolachão, que se distingue por ter um formato avantajado, de ser um pouco mais rijo que a maioria dos biscoitos, e de proporcionar grande saciedade.

A partir deste olhar, quero trazer alguns tipos das chamadas bolachas/biscoitos mais consumidas, mais populares no comércio, e que mostram também os diferentes processos de invenção, de reinvenção, e de manutenção de receitas centenárias, que certamente chegaram de além-Atlântico.

Então vamos conhecer os biscoitos de: queijo, alho, manteiga, churrasco; coco seco, cebola roxa, nata, extra fina; passa-raiva, nata-goiaba, charque, Suíça, mata-fome; canela-fofa, sete-capas, integral, sequilho; bolo de goma, mesclado, água e sal, sodinha; meia-lua alho, língua-de-sogra, Maragogi doce, lua-cheia queijo, regalia; praieira, trufado goiaba, trufado chocolate.

Verdadeiramente para conhecer os biscoitos do Nordeste é preciso experimentar, é preciso comer para perceber suas texturas, seus ingredientes, seus aromas, e seus sabores.

E assim, certamente, estas experiências gastronômicas trarão grandes referências para o conhecimento e para o reconhecimento dessas comidas doces, na sua maioria, já tão nacionalizadas, tão abrasileiradas.

 

Raul Lody

Tareco - Foto Eduardo Gazal

Tareco – na mesa do rico e na mesa do pobre

Texto e fotos: Eduardo Gazal

Dentro da doçaria pernambucana, que se estende aos estados vizinhos, encontraremos o tareco.

São biscoitinhos doces, com formato arredondado e coloração dourada.

Todos conhecem, agrada às crianças, adultos e pessoas com idades mais avançadas.

Seu sabor é inconfundível e sofre pequenas alterações independentemente dos locais de sua manufatura.

Encontramos para venda em padarias, mercadinhos e nas estradas.

O tareco é unanimidade como guloseima doce. Um verdadeiro ‘diverte bocas’.

 

 

 

Para o embasamento mais acadêmico, o livro Dicionário do Folclore Brasileiro (em sua 12ª edição, de 2012), de Luís da Câmara Cascudo, relata o seguinte:

“Tareco. Bolinho torrado, feito de farinha de trigo, ovos e açúcar, redondinhos e saborosos. Indústria pernambucana, que se popularizou pelos estados vizinhos, o tareco é oferecido aos passageiros dos comboios que demandam o Recife, e conhecido por todas as idades. Data, ao que parece, dos primeiros anos do século XX”.

 

Tareco - Foto Eduardo Gazal
Dicionário do Folclore Brasileiro, Luis da Câmara Cascudo – Foto Eduardo Gazal

 

 

 

 

Natal Tropical - MAD - Foto Jorge Sabino

Um Natal com doces de frutas tropicais

Os imaginários tradicionais e populares trazem muitas referências sobre comidas e bebidas que devem compor as tão celebradas ceias de Natal. Contudo, estes imaginários referem-se a dietas alimentares do hemisfério norte.

Lá, onde neste momento, dezembro é o inverno, onde muitas localidades têm inverno rigoroso, repleto de neve. Cá, no hemisfério sul, vivemos um verão pleno, muito sol e calor, sendo esta também a temporada de muitas frutas, como a manga, o caju, o abacaxi, entre outras que compõem os nossos hábitos alimentares durante todo o ano. Neste ambiente de frutas, quero destacar a banana, na sua variedade de tipos e de sabores. Certamente uma fruta tropical emblemática.

Desse modo, em dezembro é comum realizarmos as nossas ceias com assados de carnes de diferentes tipos, com molhos acrescidos de muita gordura; além disso, acrescentamos os doces estão repletos de cremes, as frutas cristalizadas, porque copiamos as celebrações da Europa, onde no inverno as frutas são mais raras, e por isso são glaceadas para serem consumidas nas festas de fim de ano. As bebidas são também a base de vinhos tintos, licores e o outros mais adequados a estação de inverno. Também, compõem esses cardápios algumas frutas secas como: nozes, amêndoas, avelãs, uvas em forma de passas; entre outras comidas muito mais apropriadas para o inverno.

Então, porque não pensar em opções de ceias mais adequadas ao nosso verão, verão sempre muito quente, onde as comidas e as bebidas devem ser muito mais refrescantes, tropicalizadas, para assim serem melhor apreciadas integradas ao nosso meio ambiente.

Ainda, neste olhar sobre a ceia tropical de Natal, quero destacar como é interessante gastronomicamente, e certamente muito saboroso, o consumo de frutas in natura, para aproveitarmos o seu sabor na intensidade, perceber a beleza da cor e da textura de cada fruta.

Certamente são tantas as opções de frutas, frutas do cotidiano, frutas que fazem parte das nossas referências de brasileiros. E a banana está integrada neste amplo imaginário que idealiza nesta fruta uma imagem do que é tropical. E mesmo ela sendo procedente da Ásia, a banana passou a ser uma fruta assumidamente brasileira.

Ela é um verdadeiro ícone tropical. A banana traz sua luxuriante cor imersa no sol. Isto tudo faz com que haja um entendimento, e uma ampla agricultura de povos nativos da América Latina e do Caribe idealizados como paraísos tropicais.

Gilberto Freyre tem assumidamente um método preferido de análise social que se dá por meio da comida. Ele busca criar uma verdadeira mentalidade de nacionalização de produtos, de cozinhas, de receitas; e de hábitos alimentares que identifiquem o brasileiro. É uma verdadeira busca por comidas de identidade.

“Porque em relação a natureza, não pensamos ainda, nesses, quatrocentos anos, de inquilinos a donos (…) Não merecemos a palmeira, nem o juazeiro, nem o tamarineiro. Merecemos, talvez o mamoeiro e a bananeira, já muito nossas”.
(Freyre, Gilberto. Um paradoxo para o Recife In “Diário de Pernambuco”, anos 1920)

Gilberto mostra as opções de frutas da região e de frutas exóticas, e mostra também que estas frutas devem assumir suas próprias falas culinárias, integrar os hábitos, e ampliar as opções dos alimentos. Tudo localiza um sentimento que leva a valorização dos produtos locais, e traz a comida como uma referência de lugar, uma indicação de terroir.

Assim, há uma leitura avançada, para os anos 1920, sobre ecologia e sobre a comida nos contextos da cultura e, em especial, do patrimônio alimentar brasileiro. Mais tarde, nos anos 1930, ele publica pela primeira vez em língua portuguesa a palavra ecologia no seu livro “Nordeste”, e esta obra pioneira localiza uma civilização a partir de uma fruta exótica, a cana sacarina.

O açúcar da cana de açúcar une-se às frutas nativas para formarem uma rica e diversa cozinha de doces, de doces ibéricos que foram tropicalizados, abrasileirados.

Gilberto aponta para os hábitos alimentares locais, e dá destaque para a banana, fruta há muito integrada à mesa regional. Fruta do cotidiano e que está nas mesas desde o café da manhã até as sobremesas mais elaboradas, como a tão estimada “cartola”. Preparo feito a partir da banana-prata, bem madura; queijo de manteiga, açúcar e canela.

As frutas tropicais nativas como o caju, o abacaxi, a pitanga, a goiaba, o araçá, misturam-se com outras frutas tropicais exóticas, vindas do Oriente, como a jaca, a manga, a graviola, a fruta-pão, o jambo, entre tantas que já se abrasileiraram, e que fizeram do Brasil seu território de representação e de identidade.

Com diferentes frutas, há o costume de se fazer duas preparações culinárias tradicionais, as frutas em calda e os chamados doces de “massa”. Isto mostra também os diferentes aproveitamentos das frutas, pois as receitas de doces são formas de conservar e ampliar o consumo das frutas.

Há os doces em calda, muitas vezes acompanhados de complementos como queijos. São doces para serem apreciados dentro de compoteiras de vidro ou de cristal. As frutas nas caldas, em ponto de fio, quase transparentes, para poder revelarem a cor e o brilho de cada fruta.

E ainda, há outras percepções que os doces promovem durante o seu preparo, são os odores, seja da fruta ou das especiarias como o cravo, a canela, ou outra; que faz quem está dentro da casa ou da cozinha ir até o fogão, e reconhecer a assinatura da doceira daquela receita familiar.

Sem dúvida, estão nas receitas familiares as mais importantes memórias pessoais; e, desta maneira, cada prato traz referências, e sentidos especiais, para a ritualidade da casa e das relações hierarquizadas da própria família. A receita do doce de banana de rodelinha, uma receita feita com quantidades e modos subjetivos, pessoais, possibilita que este doce tenha tantos acréscimos e assinaturas de temperos, de especiarias, que marcam cada preparo, cada maneira de se fazer este doce.

Por exemplo, os memoriais “Cadernos de receitas de D. Magdalena”, mulher de Gilberto, mostra uma receita do doce de banana de rodelinha que era feita na sua casa em Apipucos: duas dúzias de bananas-prata, maduras, cortadas em rodelas, três xícaras de açúcar, e água. Cozinhe as bananas com o açúcar em água suficiente que dê para cobrir. Adicione cravo, se quiser. (Receita do livro “À Mesa com Gilberto Freyre”. Org. Raul Lody. Ed. Senac Nacional, 2004).

Assim, geralmente os doces de frutas são feitos de forma muito simples, e o ponto do doce é que dá a qualidade autoral e emocional ao doce.

São tantas opções de doces de frutas, doces também para serem apreciados na sua estética, na beleza da sua cor, da sua forma; beleza que sugere o seu consumo, porque tudo isso se inclui no entendimento pleno da alimentação.
E ainda mais quando essa alimentação é festiva e de celebração, e aí novamente trago o amplo diverso processo de festejar o Natal, certamente festejar pela boca, com as comidas e com as bebidas mais adequadas ao nosso clima.

Certamente a presença de doces de frutas, de doces festivos do Natal com as frutas tropicais, fazem desta festa, uma festa mais nossa, mais brasileira, multiculturalmente brasileira.

RAUL LODY

Bolo Barroco - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

O Bolo Barroco

Barroco é um estilo artístico que começa na Europa; e, em especial, na Itália, a partir do século XVI, e se estende por outros países, povos e culturas, inclusive nas colônias de Portugal, até chegar ao Brasil.

O auge do Barroco foi nos séculos XVII e XVIII, valoriza-se o luxo por meio do uso do douramento empregado em muitos elementos decorativos, e a religião volta-se a mais ampla e alegórica celebração da fé.

É o ouro que chega às igrejas, que chega aos palácios, às indumentárias. O douramento invade os hábitos e os costumes, sendo amplamente valorizado no trabalho de escultores, de joalheiros, de costureiros, entre outros ofícios que louvam a Deus.

Este estilo no Brasil é chamado de Barroco tardio, por ter se fixado especialmente nas igrejas nos séculos XVIII e início do XIX; chamado também de arte colonial.

O Barroco marcou imaginários perante a fé e tocou noutras manifestações, como nas técnicas artesanais que possibilitavam revelar os desenhos, os volumes, e nos materiais que pudessem traduzir este estilo nas casas, nas mobílias, nas roupas, na gastronomia, e, em especial, na doçaria.

Afirma-se que o Barroco está e compõe a nossa arte popular, especialmente no artesanato de rendas e bordados, nos entalhes sobre madeira de muitos escultores, na pintura; entre muitas outras formas de expressar luxo e riqueza por meio de elementos visuais. Este imaginário traz motivos recorrentes às igrejas coloniais, as roupas e aos objetos, que bem definem um estilo que revelava um novo conceito de morar e de se relacionar com o corpo.

Na confeitaria são muitos os exemplos de delícias doces que se apresentam barrocamente como nas joias e nos entalhes, e que mantém o imaginário do douramento do Barroco.

Na confeitaria, os bolos tradicionais, que são confeitados com glacê à base de açúcar, são verdadeiras expressões dos volumes dos entalhes e dos desenhos das suas volutas que se entendem como de estilo Barroco. Assim, mantidos na estética, e no conceito de beleza, o bolo guarda a identidade deste estilo que busca o imaginário da nobreza, e se pode dizer que muitos doces são verdadeiras joias barrocas feitas de açúcar.

Raul Lody

Pernambuco é de açúcar

Texto e fotos por Josué Francisco da Silva Júnior

Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br

 

Açúcar vem do sânscrito, mas foram os árabes que nos legaram as-sukkar, como foram eles também que nos transmitiram ár-raçif para nominar o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco, fundado no século XVI, sob a proteção de Santelmo, o santo dos marinheiros.

Independentemente das coincidências nas raízes linguísticas, foi aqui que, há quase 500 anos, teve origem sobre os massapês da Zona da Mata uma avançada “civilização do açúcar”, forjada na mão de obra de negros escravizados sob a dominação da elite branca da época.

Em Pernambuco, é quase heresia se fazer dieta de açúcar, já que, desde tempos imemoriais, a economia do Estado foi alicerçada sobre o produto. Foi a amálgama que edificou Olinda e a transformou, do alto das suas colinas à beira-mar, numa pequena Lisboa dos trópicos. Era o “ouro branco” cobiçado pelos ingleses no Saque do Recife, em 1595 e, no século seguinte, pelos holandeses da Companhia das Índias.

Até a paisagem do Recife não seria a mesma sem o açúcar. Basta olhar as gravuras ou as fotografias que surgiram a partir do Oitocentos para se ver o enxame de navios, barcas e alvarengas nos rios e cais da cidade carregados de sacas do produto, marca registrada que perdurou até pouco tempo atrás.

Embora socialmente injusta e “amarga”, a lavoura da cana-de-açúcar, da qual muito já se falou para o bem e para o mal, deu origem a uma rica culinária constituída por doces bem elaborados e dezenas de bolos opulentos, como o Souza Leão, o Cavalcanti, o Guararapes ou o Luiz Felipe, para citar uns poucos. Aliás, os bolos pernambucanos vieram dos engenhos de açúcar e da ebulição das suas cozinhas, como bem representou o genial Cícero Dias, no seu Engenho Noruega. Têm nome, sobrenome, procedência e, antes mesmo de existir denominação de origem e identidade geográfica, já podiam ser rastreados. É bolo Souza Leão do Engenho São Bartolomeu, do Noruega ou ainda do Jundiá ou do Batateiras, somente para falar do mais famoso, do bolo símbolo da independência gastronômica brasileira, como disse Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, pesquisadora de gastronomia. O Souza Leão de hoje em dia está mais comedido, mas já foi exagerado: massa de mandioca peneirada várias vezes, leite de seis cocos, muito açúcar e manteiga e, pasmem, 18 gemas! Uma verdadeira revolução promovida pelas quituteiras da casa-grande, como não bastassem as tantas revoluções que aconteceram aqui. Essa rebeldia não se deu apenas com o Souza Leão, mas também com o Luiz Felipe, de mesma estirpe, com o seu indefectível ingrediente— o queijo-do-reino —, uma das mais bem-sucedidas explosões do dual doce/salgado.

 

Bolo Souza Leão - foto de Josué Francisco da SIlva Junior
Bolo Souza Leão – foto de Josué Francisco da SIlva Junior

 

Outros bolos icônicos merecem destaque, como o bolo-de-rolo e o bolo-de-noiva-pernambucano, diferentes de tudo no gênero. O primeiro é feito a partir de uma massa intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas, com cuidado para que o doce não ultrapasse a massa. Os puristas admitem apenas a goiabada como recheio e torcem o nariz para recheios surgidos recentemente, como doce de leite ou chocolate. E ai de quem disser a um pernambucano que bolo-de-rolo é rocambole! É quase uma declaração de guerra. Já o bolo-de-noiva-pernambucano possui massa densa e escura, proveniente da mistura de doce de ameixa, frutas cristalizadas, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho Moscatel ou Porto e especiarias, diferente dos bolos de casamento de massa clara do resto do país. Há quem coloque até queijo-do-reino e goiabada. E ainda é coberto por uma farta camada de glacê-mármore feito de açúcar-de-confeiteiro e limão. O bolo-de-noiva-pernambucano possui influência direta do Christmas Pudding britânico, como atesta o antropólogo Raul Lody. Não se imagina que uma iguaria tão complexa tenha sido herança de um povo cuja culinária não possui lá boa fama. Mas, sim, veio dos ingleses, cuja enorme colônia se fixou em Pernambuco a partir do século XIX, e deixou também o bolo-inglês, de constituição mais simples, porém não menos saboroso.

 

Bolo de noiva pernambucano - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Bolo de noiva pernambucano – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

Gilberto Freyre, sociólogo e autor do célebre Açúcar de 1939, afirmava que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, toucinho-do-céu, somente para mencionar alguns.

Em Pernambuco, não basta ser caldo de cana, tem que ser com pão-doce porque açúcar pouco é bobagem. Comida salgada tem que ter doce: pastel de carne moída aqui vira pastel-de-festa e com açúcar! Queijo de coalho come-se com mel de engenho. O que seria da cartola, a clássica sobremesa de banana Prata e queijo de manteiga, sem o açúcar abundantemente polvilhado por cima com canela?

Andar pelas ruas do Recife é ter os ouvidos adoçados pelos pregões “Japonêêêêês!” vindo do vendedor do mais famoso dentre os doces de tabuleiro; ou “Mé nôôôôvo de ingeeeeem!”, do vendedor de mel de engenho na lata, ofício que se perdeu no tempo para sempre. E os doces populares? cocada, pixaim, sambongo, entre muitos outros trazem a grife africana, como toda a cozinha dos engenhos. Ainda hoje, uma volta nas feiras livres pode-se, com sorte, esbarrar numa banca de doces com os incomparáveis quebra-queixos ou chupar cana pura cortada em roletes enfiados em talas de bambu. Sabores de infância que quase não se veem mais.

 

Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…
(Trem das Alagoas, Ascenso Ferreira)

 

…já dizia o gigante Ascenso Ferreira no trajeto de trem pela Mata Sul Pernambucana. Diga-se de passagem que Ascenso junto com João Cabral de Melo Neto foram os poetas que melhor traduziram os canaviais numa verdadeira sociologia em forma de versos.

 

Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
(O Vento no Canavial, João Cabral de Melo Neto)

 

Bebida em Pernambuco vem da cana-de-açúcar e atende por nomes diversos: cachaça, aguardente, caninha ou pinga. Evidentemente, também é patrimônio estadual. E não sem razão, afinal aqui foi o seu primeiro centro produtor e hoje muitas marcas famosas saem dos alambiques distribuídos do Litoral ao Sertão. Sabia que a primeira cachaça industrializada do país foi a Monjopina, do Engenho Monjope, de Igarassu, em 1756? Um raro exemplar dela está lá no Museu da Cachaça, em Lagoa do Carro, a maior coleção do Nordeste, com mais de 12 mil marcas.

As mudas de cana chegaram com as caravelas, porém há certa controvérsia em torno do surgimento do primeiro engenho de açúcar, se em São Vicente ou na Ilha de Itamaracá, no entanto é indiscutível que uma das usinas mais antigas em funcionamento no Brasil é de Pernambuco — a Petribu — moendo desde 1729, quando ainda era engenho. É dela o primeiro açúcar demerara comercializado no país (demerara é aquele açúcar grosso com gosto de melaço, cujo nome se originou da região do mesmo nome na nossa vizinha Guiana). E falando em produtos de engenhos, “rapadura é doce, mas não é mole não!” Vem do Sertão a melhor. Sertanejo que se preza come com farinha para dar sustância. Duas cidades brigam pelo título de Capital da Rapadura do estado, Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo, ambas com seus canaviais espalhados pela Serra da Baixa Verde.

Açúcar e frutas nativas andam de mãos dadas. Caju, umbu, ubaia, pitanga, guabiraba e muitas outras podem ser comidas frescas, mas têm que virar doces, licores e compotas, “tudo à moda de Pernambuco”. Caju é doce de praia, feito em calda ou em passa, antigamente colocada para secar nos telhados das casas de pescadores. Umbu ou imbu, como se diz no interior da região, é doce sertanejo e a fruta dá até uma bebida, a saborosa umbuzada feita com leite. Da guabiraba, frutinha parente do araçá e cada vez mais rara na Zona da Mata, se faz o doce símbolo de Paudalho e que só se come uma vez no ano, por conta da safra curta. Tem até doces de Carnaval, uma das nossas festas mais afamadas, que o digam os filhoses de calda translúcida e os jetones coloridos.

Lembrando de festas, o São João é o palco principal de todos os bolos, doces e afins pernambucanos: canjica, munguzá, manuê, bolo de macaxeira, bolos de milho de todos os jeitos, arroz-doce e mais uma infinidade de guloseimas. Um parêntese deve aqui ser aberto para reverenciar o inigualável Pé-de-moleque pernambucano (há outros bolos e doces diferentes com esse mesmo nome Brasil afora), um bolo escuro de massa de mandioca no qual se adicionam café, castanha-de-caju, erva-doce, canela e cravo-da-índia como ingredientes. É o rei das mesas do mês de junho e já impressiona pela cor. E pensar que a elite imperial não apreciava porque era comida de escravizados!

 

Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior
Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

No Agreste, a cidade de Pesqueira floresceu com a indústria de doces, dando origem a um polo doceiro famoso que se espraiou pelos Vales dos Rios Moxotó e Pajeú. Em Pesqueira, há ainda o Museu do Doce, instalado no prédio da antiga Fábrica de Doces Rosa. Também Bezerros, com suas dezenas de pequenas fábricas de nego-bom de banana e mariola de goiaba, frutas vindas dos brejos de altitude, as regiões de microclimas singulares do Semiárido. A vila de Poço Fundo, em Santa Cruz do Capibaribe, merece destaque pelos doces que são patrimônio do município e que deu origem a um festival bem conhecido na região. Já no Alto Sertão do São Francisco, a bacia leiteira de Afrânio ganhou notoriedade pela fabricação de um doce de leite branco especial comercializado em barra, um sucesso até no vizinho Piauí.

O açúcar também faz parte da história de vida das mulheres pernambucanas desde sempre, como Dona Menininha, doceira de Agrestina, que é patrimônio vivo de Pernambuco. Sabem por quê? É a rainha única do alfenim (de al-fanid, novamente os nossos árabes…), o doce que toma forma de tudo o que a imaginação pode proporcionar. Dona Ceci Araújo e sua família guardam a sete chaves a receita do doce de laranja-da-terra, que fez a fama da bela e fria Triunfo. Segredos também são guardados pelas boleiras tradicionais do Recife, cujas receitas estão nas famílias há gerações. Dona Fernanda Dias comanda a mais conhecida confeitaria da capital pernambucana e produz iguarias exemplares, como o bolo-de-rolo mais perfeito da cidade, hoje espalhado por todo o Brasil. As filhas de Dona Leoni Asfora, Jane e Eliane, são responsáveis pela manutenção da qualidade de um dos bolos-de-noiva mais desejados do Recife, cuja receita herdaram da sua talentosa mãe. Ainda bem que existem as filhas e netas preocupadas em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, que o digam Dona Rita Pereira e sua família, que heroicamente resistem na busca das guabirabas pelas chãs dos tabuleiros de Paudalho, para a feitura do raro e excepcional doce.

 

Cartola - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Cartola – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

O açúcar em Pernambuco está entranhado não apenas na gastronomia e nos bens patrimoniais e culturais, mas muito além disso, está profundamente enraizado na formação do seu povo, na sua economia e na influência que o Estado teve sobre toda a Região ao longo dos séculos. “Sem o açúcar… não se compreende o homem do Nordeste”, resumiu sabiamente Gilberto Freyre.

 

VEJA NOSSA GALERIA DE DOCES PERNAMBUCANOS

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Texto modificado e atualizado originalmente publicado em Comida com História (2022).

 

 

Doce intimidade - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

Doce intimidade

“O menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; e lambuzar-se na geleia de araçá ou goiaba; e brincar com os moleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no (Menino-Deus) muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces”. Diz Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala.

Estas observações de Gilberto Freyre mostram que muitas relações sociais estão fundamentadas nas representações e nas seleções alimentares, nesse caso com ênfase no açúcar, um alimento fundador de uma sociedade brasileira, complexa, multicultural e multiétnica.

Assim, a nossa identidade alimentar é muito marcada pelo doce, numa afirmação das nossas escolhas para comer e beber; e, certamente, na construção das diferentes maneiras de manifestar soberania alimentar.

Esta intimidade e escolha do brasileiro pelo açúcar, açúcar da cana-de-açúcar, recupera uma larga história social e econômica que faz parte de uma base verdadeiramente civilizatória; e, ainda, formadora das nossas escolhas alimentares.

Sem dúvida, o brasileiro gosta, gosta muito, do que é doce. Há um profundo valor simbólico no açúcar, nas suas mais diferentes maneiras de manifestar as possibilidades de estilos alimentares, e que encontram formas criativas e tradicionais de buscar no que é doce o prazer e a alimentação.

 

 

Uma identidade nacionalmente doce se fortalece nos seus hábitos alimentares e nas suas escolhas soberanas do que comer. São muitos valores agregados aos significados do que é doce, e as projeções ampliam-se em adjetivos, tais como: você é um doce; como é doce este lugar; vou te dar um doce; entre outras maneiras de trazer o imaginário do doce nas relações sociais, e com ele o açúcar.

Também, esses valores determinam o que é doce num conceito não apenas alimentar e nutricional, mas num conceito com fortes bases filosóficas e ideológicas.

Há uma presença evidente nos muitos hábitos, e nos sistemas alimentares do brasileiro, uma espécie de intimidade e funcionalidade com o açúcar; e ele está presente na vida de várias formas: açúcar refinado, o que é mais comum para adicionar e complementar comidas e bebidas; rapadura, mel de engenho ou melaço; entre outras.

Tão nosso e tão brasileiro é a mistura da farinha de mandioca com o açúcar ou pedaços de rapaduras, numa realização culinária inicialmente lúdica, mas significativa no que se refere as complementações alimentares das dietas do dia a dia de milhares de brasileiros.

Farinha com açúcar em muitos casos é uma dieta para matar a fome de muita gente. Também se pode adicionar água a esta mistura, é o tão conhecido chibé, utilizado principalmente na alimentação de crianças. É a saciedade proporcionada pela água com a farinha de mandioca.

Transitar pelo açúcar é passar pelas suas muitas possibilidades para atender as necessidades alimentares e nutricionais, que é uma forte recorrência da própria história civilizatória da cana de açúcar na construção dos nossos paladares e dos nossos conceitos culturais do que é doce.

Assim, trazer o açúcar nos doces e nas bebidas artesanais é trazer um tipo de satisfação e realização que a nossa boca entende por doce. Neste mesmo imaginário tão amplo e geral nos nossos sistemas alimentares, liga-se o conceito e o sentido simbólico do que é doce com o sentido simbólico do que é bom.

Quem nunca comeu um punhado de açúcar para ludicamente se adoçar, entre as muitas experiências na conquista do que é doce, subjetivamente o doce é para comer e para manifestar alteridade.

 

 

Raul Lody