Categoria: Mostra temporária

Pão-de-Ló-de-Ovar Museu do Açúcar e Doce Foto de Eduardo Gazal

Pão de Ló de Ovar

Texto e Fotos de Eduardo Gazal

 

Conheci esta iguaria portuguesa no Recife, em um momento em que estava pesquisando sobre o Pão de Ló como conhecemos no Brasil. Não sabia da existência deste doce na versão que leva a designação de “Ovar”, até encontrar o proprietário da Padaria Augusta, localizada no Recife, o português Paulo Coelho.

Em nossa conversa inicial, Paulo me apresentou o Pão de Ló de Ovar e relembrou momentos de sua infância; sua memória afetiva se aflorou e nos remeteu à forma de saborear o doce, utilizando colher em vez de garfo e faca; além de harmonizações possíveis para esta iguaria portuguesa.

O Pão de Ló de Ovar pode ser o responsável pela finalização de um almoço ou jantar, sendo que para escoltá-lo, o Vinho do Porto será sempre um grande companheiro. Também poderá ser acompanhado de queijos. Paulo se recorda do Queijo da Serra de sua terra natal.

Realmente, o Pão de Ló de Ovar é muito diferenciado dos inúmeros pães de ló que já experimentei. Sua textura é úmida, com uma cobertura dourada e um pouco crocante. O sabor lembra os tarecos e cavaquinhas portuguesas. Não apresenta uma doçura extrema e pode receber acompanhamentos, pelo menos aqui no Brasil, de doce de leite ou geleias variadas.

Com estas variações, torna-se um excelente item no café da manhã ou lanche vespertino.

 

 

Saiba Mais

Incluímos nesta publicação o “Caderno de Especificações do Pão de Ló de Ovar” com seu registro de Indicação Geográfica Protegida (IGP).
Documento assinado pela APPO – ASSOCIAÇÃO DE PRODUTORES DE PÃO DE LÓ OVAR, em Portugal, datado de Maio de 2012.

Abaixo reproduzimos os temas abordados no documento e um link direto para conhecer a complexidade do processo de registro da iguaria portuguesa.

Conheça alguns itens necessários ao registro de IGP, como método de preparo e serviço de embalagem:

  • Nome do Produto;
    Descrição e definição do Produto;
    Características das Matérias primas;
    Características Físicas e Sensoriais;
    Características Químicas e Microbiológicas;
    Delimitação da Área Geográfica;
    Área Geográfica de Produção de Matéria Prima;
    Área Geográfica de Fabrico e acondicionamento do Produto;
    Garantia sobre a Origem Geográfica do Produto;
    Modo de Produção;
    Apresentação do Produto;
    Acondicionamento do produto;
    Comercialização do Produto;
    Elementos específicos da rotulagem relacionados com a Indicação Geográfica;
    Marca de Certificação;
    Rotulagem obrigatória em todas as formas de apresentação;
    Elementos que provam a ligação com o Meio Geográfico;
    Enquadramento geográfico;
    Aspectos históricos e sociológicos do Produto.

Para conhecer, guardar e estudar:

Link direto: “Caderno de Especificações do Pão de Ló de Ovar”

 

 

Fotos – Eduardo Gazal
* Pão de Ló de Ovar produzido na Padaria Augusta, Recife, Pernambuco, Brasil

manga - Museu do Açúcar e Doce

A doce e versátil Manga

Texto e Fotos por Eduardo Gazal
(Fotos Manga Espada, Manga Tommy e Suco de Mangas)

 

Atualmente, a manga aparece entre as frutas tropicais de maior consumo para os brasileiros e é conhecida em todos os continentes. A manga é a sétima cultura vegetal mais plantada no mundo e a terceira mais cultivada nas regiões tropicais do planeta.
Originária no sudeste asiático, foi introduzida no Brasil pelos colonizadores portugueses no período das grandes navegações do início do século XVI.
É uma fruta com sabor e aroma muito marcantes, além de ser grande fonte de vitaminas, carotenoides e carboidratos, portanto muito funcional.
Existe uma grande diversidade de espécies, com sabores e cores diferenciadas.
Nesta publicação destacamos a manga de quintal, muito popular na região Nordeste do Brasil, a conhecida Manga Espada. Mostramos também uma variedade que encontramos nos pontos de abastecimento de vegetais e feiras, denominada Manga Tommy.
Na maioria dos casos é saboreada in natura, mas encontramos também na composição de sucos, compotas, geleias e sorvetes.

 

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Doces de Manga do Brasil e de Goa

Escolhemos algumas receitas tradicionais que resgatamos do livro “Açúcar” (1939), de autoria de Gilberto Freyre, pesquisador pioneiro dos registros culinários. Podemos fazer comparações entre os métodos de preparação e ingredientes, notando sempre a presença do açúcar extraído da cana e as mangas dos trópicos asiático e americano.
A primeira receita, muito simples, é descrita da seguinte forma:
Doce de Manga  
Descasca-se a manga e corta-se em talhadas. Faz-se um mel ralo (calda), põem-se dentro as talhadas, que se levam ao fogo para se fazer o doce. Quando o mel se mostra em ponto de fio brando o doce está pronto.
No anexo de número 2, do livro de Gilberto Freyre, encontramos um capítulo com o seguinte título: “Receitas de Doces e Bolos Recolhidas em Goa (Índia Portuguesa)”. Escolhemos as receitas abaixo:
Doce de Fatias de Mangas
É preciso 1/2 quilo de açúcar para 1/2 quilo de fatias de mangas descascadas e limpas. Faz-se numa vasilha o mel em ponto de pasta, deitam-se as fatias e deixam-se cozer por uns 20 minutos. Passados uns 4 dias, torna-se a levar ao lume para se dar uma fervura. O frasco onde se conservam as fatias deve ser bem arrolhado.
Mangada (Outro Doce de Mangas)
Para 6 1/2 quilos de massa coada de mangas douradas, são precisos 4 quilos de açúcar. Tirada a massa, mistura-se com o açúcar e leva-se ao lume numa vasilha grande e deixa-se cozer, agitando sempre com uma colher de pau até engrossar.

 

Saiba Mais

Tabu Alimentar
Conheça a Mangusta, um prato contra o tabu alimentar do leite com manga, tido como fatal.
Recolhemos o relato no “Dicionário do Folclore Brasileiro”, de autoria de Luís da Câmara Cascudo, que teve sua primeira publicação em 1954.
Transcrevemos abaixo:
“Comida do Ceará, da região do Cariri. Mangusta é lanche ou merenda. Numa panela de água põem-se algumas mangas (Mangifera indica,Lin.) colhidas de vez, perto de amanhecer, e cozem-nas. Esfriadas as mangas, cortadas em fatias, são passadas por uma urupema, ficando pureia de mangas. Com açúcar e leite frio à vontade, ficando a mangusta mais grossa ou mais fina, serve-se”. 
Quindim - Museu do Açúcar e Doce

Quindins de Iaiá do Brasil

QUINDINS DE IAIÁ
Conhecido popularmente como quindim, sua cor, o amarelo intenso, é sua marca registrada. Qualquer vitrine de doces fica mais bela com a presença dos quindins. Nas mesas de festas, o docinho aparece reluzente e encantador.

O doce mais belo da nossa culinária nasceu da necessidade de adaptação de receitas tradicionais europeias. Nossos ingredientes nativos ou já aclimatados ao solo brasileiro, como o coco por exemplo, possibilitaram às cozinheiras do início da nossa formação cultural a realização de iguarias seguindo as receitas antigas. Na preparação dos quindins, o coco ralado substituiu as amêndoas portuguesas.

Doceiras do Serido Museu do Açúcar e Doce

O primeiro encontro de Doceiras do Seridó

A doçaria é uma atividade secular que está dentro das residências.

A economia do Seridó pode ser fomentada a partir desse patrimônio cultural”.

(Pedro Medeiros)

O Primeiro Encontro de Doceiras do Seridó realizado em Caicó/RN, entre os dias 27 e 28 de setembro último, pela JK Produções e Eventos, contou com a presença de setenta doceiras de doze municípios da região do Seridó. Com o intuito de divulgar o potencial do doce seridoense, patrimônio cultural alimentar da região, além de incrementar o turismo cultural, Diego Vale (diretor da JK Produções), reuniu produtores, artesãos e confeiteiros em torno do Largo da Catedral de Santana.

O projeto do evento foi contemplado no Edital de Economia Criativa 2019, do Sebrae/RN, além de reunir parceiros como o Município de Caicó, SENAC, e Sistema Comércio RN, SESI e FIERN, Fundação José Augusto, Governo do Estado, IFRN, Paróquia de Sant’Ana e Rede Seridó. Dentre as atividades, o evento contou com um concurso para eleger os melhores doces da região, oficinas de doces típicos, oficinas de receitas inovadoras, a feirinha de doces, produtores e artesanatos da região, a participação de pesquisadores, e o lançamento do livro “Comida da Terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó” de Julie Cavignac, Muirakytan K. de Macedo, Danyccele Silva e Maria Isabel Dantas.

Para explicar o Seridó, aproprio-me de um trecho da introdução do livro mencionado, Comida da Terra, em que os autores afirmam: “As fazendas de gado instaladas no Seridó foram os primeiros núcleos de colonização que deram origem às cidades contemporâneas, constituindo-se como microcosmos estruturados pelas demandas da economia e da sociedade colonial. Dado sua persistência no tempo, o modelo de sociabilidade construído a partir da convivência nas ‘casas de morada’ rural imprimiu marcas profundas na emergência de um ‘estilo seridoense’, formulado em termos de um exercício identitário que agencia a religiosidade, as festividades, a cultura material e as representações míticas e artísticas. Entre essas manifestações, a alimentação aparece como um bem cultural que tem significativa centralidade na reivindicação de uma identidade regional revigorada durante as celebrações de padroeiros, as festas de São João ou em julho, no período das colheitas, momentos em que a família se reúne para degustar as ‘comidas de raiz’; ocasião em que é experimentada uma volta às origens, momentos privilegiados para reencontrar sons, cheiros, gostos, emoções e sabores esquecidos”.

Na região do Seridó, encontramos doces singulares, entre eles o Chouriço que é um doce de sangue de porco com banha de porco, leite de coco, rapadura, farinha de mandioca castanha de caju e especiarias cozidos em um tacho por cerca de oito horas; o filhós que é um doce frito servido com mel de rapadura; o forrumbá que é um doce de bagaço de coco com rapadura; e o doce seco.

De acordo com Luís da Câmara Cascudo, os filhós aparecem “registrados no século XIV. Popularíssimos em Portugal. Doce do Carnaval. Filinto Elísio, exilado num Paris melancólico de 1808, lamentava-se, vendo o Carnaval francês: ‘Um dia de Comadres, sem filhoses!’ Servidos sob polvilho de açúcar. Nalguns pontos do Brasil obriga à calda de açúcar”.

A oficina de doce seco foi um dos momentos mais aguardados do evento, por tratar-se de um saber que está se perdendo. Esse é um tipo de pastel recheado com espécie. Não é assado, nem frito, apenas seca-se a massa à temperatura ambiente. A espécie é um doce de origem árabe, muito comum em doces portugueses mais antigos, como os fartes.

Câmara Cascudo descreve doce seco como “a casca é a farinha de mandioca, fina, feito angu, seca, com outra porção de farinha para abrir o ponto. A espécie, recheio, é feita de farinha de mandioca, sessada em peneira fina, gengibre, gergelim, castanha de caju, pimenta-do-reino, cravo, erva-doce, mel de rapadura. É um dos doces típicos na Noite de Festa, Dia do Natal, São João, São Pedro e Ano Novo”.

A doceira Betinha, moradora de Caicó, foi a responsável pela transmissão desse saber na oficina de doce seco. A massa é produzida com farinha e água que depois é bem trabalhada. Em seguida, faz-se bolas semelhantes às de ping-pong que são abertas com um rolo de massa. No centro da massa é colocada uma porção de espécie, e o pastel é fechado para, em seguida, ser pintado. Depois deve secar para ficar com uma textura firme.

Doceiras do Serido
Abrindo a massa para colocar o recheio

Doceiras do Serido
Doces secos prontos para serem decorados

Doceiras do Serido
Pintura do doce com corante alimentar

Doceiras do Serido
Doce seco finalizado

O Seridó possui um importante acervo virtual de seu patrimônio cultural do doce apresentando seus doceiros e doceiras, disponível em: http://docesdoserido.com.br/

Mais informações sobre o evento podem ser encontradas na página: https://web.facebook.com/doceirasdoserido/?_rdc=1&_rdr,

Vídeo: Doce Seridó está disponível no link: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=136072541105838&id=101129917933434&sfnsn=scwspmo&d=n&vh=e

por Lucia Soares


Referências:

CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte/MG: Ed Itatiaia e São Paulo/SP: EDUSP 1985, pp. 218-223.

CAVIGNAC, Julie A. et al: Comida da Terra: notas sobre o sistema alimentar do Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2018, p.7.


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Fartes ou Fartens – o doce que é uma fartura!

“Tanto comas que te fartes,
E sem ser cousa de espantos,
De fartes, farta a barriga,
Festeja a festa dos santos.”
(R.C.M., 1877, p. 300)

 

Fartes, Farténs ou Fartéis, todos plurais de Fartem, foi o primeiro doce que desembarcou no Brasil, com a esquadra portuguesa de Pedro Álvares Cabral. Esse momento, do dia 24 de abril de 1500, ficou registrado na carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei D. Manuel: “Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartens (bolos), mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quási [sic.] nada; e se provaram alguma cousa, logo a lançavam fora.” (Dias, Vol.2, 1920-1924, p.89).

Os fartes são considerados de origem portuguesa, e aparecem nos registros sempre como doces a base de amêndoas e açúcar,  e especiarias podendo conter ovos, envoltos por uma massa de manteiga e açúcar, em que às vezes, cita-se a farinha de trigo. Entretanto, podem aparecer também enrolados em uma fina e alva folha de hóstia.

O Vocabulário Portuguez e Latino, de Raphael de Bluteau, 1728 (Tomo 4. p. 38) define Fártem como: “Tira de massa, que dobrada, envolve amêndoas pisadas, canella, cravo, & açúcar, conglutinados com miolo de pão ralado.”

Na descrição de Cascudo (1983: 343): Fartes “ […] outra ‘permanente’ nas delícias que ao paladar oferece a perserverança portuguesa no terreno da doçaria.” Cascudo (1983: 351) faz uma correspondência entre os Fartes trazidos Cabral e o fato dele ser originário da Beira, terra dos fartes. Entretanto, questiona se a iguaira servida era de fato portuguesa, devido à duração da viagem, e supõe que deve ter sido produzido a bordo, sem as especiarias, como Emanuel Ribeiro confirmou existir, com mais amêndoas e cidrão, e a massa. Cascudo também afirma ainda que no Brasil, os Fartes não mantiveram esse nome, “Dispersaram-se na multidão inominada e gostosa dos bolos de nata, pastéis de recheio de creme, com o invólucro liso ou folhado.”

O livro A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, de Salvador Dias Arnaut refere-se a Fartalejos, termo presentes no Cancioneiro em uma composição de autoria de Luis Anriques, de características judaicas. De acordo com o livro, Esteves Pereira suspeita que Fartalejos sejam os Fartes que descreve como empadas doces encapadas.

A pesquisadora Carmem Soares, em Ensaios sobre o Patrimonio Alimentar Luso-Brasileiro, 2014, pp.25-26, relata ter encontrado a receita de Fartes no primeiro manuscrito de cozinha portuguesa do séc. XVI, atribuído à Luis Álvares de Távora no Arquivo Destrital de Braga, documento que não tivemos acesso,  além dos demais títulos que serão abordados aqui.

A primeira receita de Fartes aparece a partir do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria publicado entre o final do séc. XV início do XVI. A mesma receita foi publicada novamente em A Arte Nova e Curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se occupaõ em fazer doçes, e conservas com frutas de varias qualidades, e outras muitas receitas particulares, que pertencem á mesma arte, livro de 1788, de autoria de José de Aquino Bulhoens (Fig. 1 e 2).

 

Figura 1

 

 

Figura 2

 

Nessa receita, o creme de açúcar, mel, amêndoas, gengibre, cravo, canela e água de flor de laranjeiras é espessado com farelo de bolo. A massa é produzida com manteiga, açúcar, farinha de trigo e ovo. A composição da receita ilustra muito bem os padrões alimentares da Idade Média, em que não havia um compromisso com uma combinação entre as especiarias e estas com os ingredientes, mas, uma sobreposição, uma vez que o que importava era exibir o valor econômico através dos pratos – nesse caso muito caro, com tantas especiarias importadas. O sabor ficava prejudicado em detrimento da aparência que, naquele momento, tinha muito mais valor. O bolo era uma produção demorada e trabalhosa que fazia parte do cardápio mais elaborado da nobreza. Lembrando que foi a partir da Idade Média que a cozinha se afirmou como elemento de distinção entre as classes sociais.

No livro O Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em todos os seus ramos, de R.C. M., 1877, p. 300, (Fig. 3) a receita de Fartes é identificada como Fartes de Espécies, e o creme contém além de açúcar e amêndoas, cidrão, cravo, canela e erva doce, e é espessada com pão ralado. Depois, os fartes vão ao forno envoltos em uma massa de manteiga, açúcar e certamente, alguma farinha para estruturar. Observa-se aqui uma adaptação da primeira receita, mais simples e menos dispendiosa.

 

Figura 3

 

Uma característica comum entre essas receitas é o tipo de medida utilizada para a orientação das quantidades: arrátel, quartilho ou quarta e escudela que cairam em desuso. O “arrátel” (da palavra árabe: al-ratl) era um padrão moldado em granito ou ferro fundindo, portanto, passível de variação, que o Sistema Português de Medidas incorporou desde a formação de Portugal. Definido pelo rei D. Manuel I, em 1495, como 459g, o arrátel se manteve em vigor até o século XIX, com a introdução do Sistema Médrico Decimal, quando passou a ser substituído pela libra. Já a “quarta” representava a quarta parte de um arrátel, enquanto a ”escudela” correspondia à medida de um recipiente de madeira redondo e raso.

Observa-se que os processos que envolvem a produção da receita também exigem um saber próprio. Na receita da Figura 1 e 2, pinga-se uma gota da calda no prato para verificar o ponto que se dá quando a gota não escorrer. Na mesma receita, para verificar o ponto do cozimento, polvilha-se a canela e aperta-se a massa com o dedo, e a massa não deve grudar mais. A verificação do ponto de cozimento da segunda receita é semelhante ao da primeira, utilizando pão ralado, ao invés de canela.

Outra receita antiga de Fartes de Especia (Fig. 4) remonta o séc. XVIII, e aparece no Livro de Receitas de Cozinha, Cosméticos e Mezinhas das Freiras da Visitação de Santa Maria, Lisboa, A.N.T.T., Manuscritos da Livaria, no 2403-426).

 

Figura 4

 

Inicia-se por um pré-praparo que corresponde à produção de um bolo de manteiga, sem adição de fermento para ser ralado, peneirado e misturado ao creme dos fartes. Como nas receitas anteriores, a calda inicial não sugere a quantidade de água que será levada ao fogo com o açúcar. A canela é medida pelo valor de um tostão e o cravo, o de um vintém. Despois do recheio frio, se faz a massa – que também não cita a farinha de trigo – que deve ser estendida muito fina e cortada em tiras estreitas. Pela primeira vez, aparece na receita a recomendação para a cocção no forno. Os pequenos fartes devem ser colocados em uma bacia polvilhada com farinha para serem levados ao forno.

No Livro de Receitas de Cozinha, Cosméticos e Mezinhas das Freiras da Visitação de Santa Maria, Lisboa, A.N.T.T., Manuscritos da Livaria, no 2403-426 aparecem mais três receitas de fartes: uma de Fartes com Ovos, outra de Fartinhos, e mais uma outra de Farteis apenas (Fig. 5). Uma característica interessante dessa receita é que já aparece uma especificação da calda em ponto de espelho. A receita apresenta cidra, cidrão, cravo, canela e cheiro, e o creme recebe pão ralado no final da cocção, mas não cita a massa para envolver o creme.

 

Figura 5

 

No Livro O Doce Nunca Amargou… Doçaria Portuguesa. História. Decoração. Receituário., de Emanuel Ribeiro, publicado pela prineira vez em 1923, e cujas receitas foram recolhidas de um manuscrito de 1834, intitulado: Livro da Razão sobre algumas particularidades pertencentes à Casa Real, e Covas, e Vida do Padre Pregador Fr. José Joaquim de Santa Rosa, monge de S. Bento, e secularizado por Decreto, do Sr. D. Pedro IV no ano de 1834. Nele, a receita de Fartes de Espécie apresenta mais precisão:

“Fartes de espécies

Tomarão 8 arráteis de açúcar em ponto de fio abaixo, e lhe deitarão 4 arráteis de amêndoas muito bem pisadas, e 1 arrátel de cidrão em bocadinhos delgados e pequenos; cravo, canela, erva-doce pouca, e ferve-se-á um pouco, e se tirará em seguida, o tacho do lume, e se deitará uma quarta de pão ralado por medida, e o sinal de estar feita essa espécie, é botar em cima da espécie uns pós de pão ralado, e pôr-lhe em cima o dedo a ver se fica enxuto, e se deita em prato para esfriar; tome-se então a massa feita com manteiga e açúcar e se vão fazendo os fartes, e feitos se mandam ao forno.” (pp. 119-120).

 

Alfredo Saramago e Manuel Fialho conseguiram recolher a receita de Farte copiada a seguir, no livro Cozinha Alentejana, de 1998, pp. 231-232. Na nota de rodapé os autores declaram que os Fartes são muito comuns em Évora e naquela região. De acordo com Garcia de Rezende, na Crônica de D. João II, citado pelos autores, para a festa de casamento de seu filho, D. João II ordenou que a população preparasse vários cestos de Fartens para o banquete.

Na realidade, Saramago e Fialho,  reproduziram naquele livro a mesma receita publicada em Doçaria dos Conventos de Portugal, de 1997, p. 147, apontada como pertencente ao receiturário do Convento de Santa Helena do Calvário de Évora.

 

“Fartens ou Fartes

Leve 500 gramas de açúcar a ponto de cabelo e deite depois 250g de amêndoas raladas e duas cascas de laranja. Ponha um cravinho, uma colher de café de canela e outra de erva-doce. Deixe ferver durante três minutos. Retire o talho do lume e deite 150g de pão ralado. Mexa muito bem. Faça uma massa com 300g de farinha, uma tigela de água 100g de manteiga e 2 gemas de ovo. Mexa muito bem até que fique pronta para tender. Tenda a massa e recorte com a carretilha à volta de um pires de chá. Ponha uma colher de sopa de de espécie no meio e dobre para fazer a forma de pastel. Frite em azeite e polvilhe açúcar e canela.”

Nessa receita, os fartes se apresentam como pasteis fritos no azeite e rolados em açúcar com canela. Mantem as mesmas características das receitas anteriores, diferindo, entretanto, na forma de redação, pois dá mais detalhes sobre o modo de preparo e precisão quanto às quantidades dos ingredientes utilizados.

 

Apesar da receita original ser considerada portuguesa, pode-se observar uma forte influência da cultura árabe, tanto na presença da receita da espécie (massa semelhante ao maçapão árabe) que recheia o doce quanto na profusão de especiarias, e até mesmo na massa que pode ter sido, inicialmente, uma massa folhada pela presença marcante da manteiga, coberta com açúcar. A tendência ao secretismo de receitas que vigorava nos conventos e palácios até o século XIX,  estimulando a mutilação de receitas e a ocultação de métodos e técnicas contribuíram para que muitas delas se perdessem ou, simplesmente, desaparecessem.

No Brasil, os Fartes podem ser encontrados ainda sob essa denominação, em Sobral, no Ceará. Entretanto, a receita praticada lá apresenta pouca semelhança com aquela trazida pelos portugueses.

 

 


 

VEJA RECEITA
de Fartes de espécie por Lucia Soares, clique aqui!

 

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Receita de Fartes de espécie por Lucia Soares

Recheio de espécie

 

Ingredientes

400g de açúcar

200ml de água

200g de farinha de amêndoas

200g de cidra ralada

100g de farinha de rosca

Casca ralada de ½ laranja Bahia

Cravo da ìndia o quanto baste

Canela em pó o quanto baste

Erva-doce o quanto baste

Uma pitada de sal

 

Modo de Preparo

  1. Colocar a água e o açúcar em uma penela e levar ao forno fervendo até alcançar 107º C;
  2. Juntar a farinha de amêndoas, a cidra ralada e as especiarias mexendo até soltar do fundo da panela;
  3. Retirar e esfriar.

 

Massa

 

Ingredientes

450g de farinha de trigo

150g de manteiga sem sal

3 gemas

Cerca de 100ml de água gelada

1 pitada de sal

 

Modo de Preparo

  1. Peneirar a farinha de trigo com o sal;
  2. Misturar bem a manteiga picada para obter uma farofa;
  3. Juntar um pouco da água gelada;
  4. Juntar a gema e trabalhar a massa com as pontas dos dedos;
  5. Abrir a massa com o rolo e cortar com um cortador redondo;
  6. Colocar o recheio no centro e fechar a massa umedecendo as bordas com um pouquinho de água;
  7. Pincelar 100ml de leite com 50g de açúcar e levar ao forno à 180º C por cerca de 25 minutos.

 

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Um “Filhós” para adoçar o carnaval

O brasileiro encontra no doce um profundo sentimento de identidade e de celebração. Celebração familiar, coletiva, nas ruas, nas tradições religiosas, e nas festas populares. Os doces trazem memórias arcaicas, que podem ser encontradas na preparação de cada receita que também é uma forma de preservar o seu significado social no mundo contemporâneo.

O brasileiro se une ao doce, ao açúcar, e aos muitos desejos simbólicos que o sabor doce oferece na afirmação de pertencimento a uma sociedade formada pela cana sacarina.

E para viver o Carnaval, no Nordeste, há um doce que marca este momento especial de festa, refiro-me ao “filhós”.  Seu nome vem do Mediterrâneo, sendo nativo do norte do continente africano na região do Magrebe, onde é chamado de “rghaif”.

O filhós é um doce que está integrado aos cardápios da civilização Al-andaluz, da península Ibérica; e está presente no tempo do carnaval em Portugal, no Brasil e, em especial, Pernambuco. E, pode-se dizer que ele é um doce de carnaval.

 

Foto Jorge Sabino

 

O carnaval é a “festa da carne”, e há uma tendência de ser gorda e suculenta, para provocar os mais profundos sentimentos carnívoros, e certamente de gula, pois é uma festa marcada pelos exageros, mas sem preconceitos ou moralismos que, aliás, são sentimentos que não devem conviver no reinado do obeso Momo, o rei da luxúria.

O carnaval traz as memórias dos rituais do solstício de inverno da Europa, que sacrificam bonecos gigantes nas fogueiras em rituais agrários de renovação, de fertilidade, de alimentação; e também há celebrações com banquetes, bacanais, onde se une sexo e comida, numa integração literal ao conceito do verbo “comer”, que é usado para o ato de se alimentar pela boca e pelo sexo, o que revela quase uma antropofagia quando se diz: “vou comer você”.

Tudo remete aos rituais da fertilidade, da colheita, do nascimento, da beleza apolínea, do culto solar; e sempre sob o comando do rei da folia, que quer beber, comer e valorizar tudo aquilo que é sensorial, carnal, pois é carnaval.

E de volta ao tempo das celebrações do carnaval brasileiro, alguns cardápios estão integrados à alimentação do folião, que deve estar bem alimentado para participar da folia.  São receitas substancias que são servidas para refazer as forças dos foliões; receitas de “sustança”: feijoada; rabada; caruru; vatapá; carne de sol; angus; pirões; farofas; cabrito guisado; galinha de cabidela. E há os doces, doces de base ibérica, doces que revelam o Al-andaluz.

As receitas de matriz árabe coforma muitas cozinhas da Europa e, em especial, as dos territórios do Al-andaluz – península Ibérica., trazem as almôndegas; as migas; o pão chapata; a aletria; os frutos secos; as amêndoas; o arroz doce; as queijadas; receitas que se ampliaram e se notabilizaram na doçaria dos conventos medievais de Portugal. Ainda estão presentes as caldas de açúcar, as essências de flores de laranjeira e de rosas; como também caldas grossas de melado, mel de engenho; e o açúcar e a canela para pulverizar as frituras.

São muitas as maneiras e as receitas de filhós: filhós à pernambucana; filhós com açúcar e canela; filhós com calda de açúcar; filhós com mel de engenho; filhós de abóbora; filhós de aproveitamento de pão; filhós de almerim; filhós de azinhaga; e outras variações culinárias tais como rossette, mandazi de banana, batanca.

(Raul Lody)

 


MOSTRA UM “FILHÓS” PARA ADOÇAR O CARNAVAL

Textos Raul Lody
Fotos Jorge Sabino

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RECEITA PARA SE FAZER FILHÓS À PERNAMBUCANA

 

Ingredientes

350 g de farinha de trigo; 250 g de açúcar; 10 g de fermento; 50g de manteiga; 1 ovo; óleo suficiente para fritar; sal, casca de limão a gosto.

 

Maneira de preparar

Bata a manteiga com o açúcar, e junte com o ovo e o sal, misture tudo com a farinha de trigo e o fermento, faça uma massa e deixe levedar.

Depois, retire a massa às colheradas e frite no óleo fervente até ficarem douradas.

Quando os filhoses estiverem frios, cubra-os com a calda feita com água, açúcar e a casca de limão, quando estiver fria.

 


 

Essa receita tradicional de Pernambuco se aproxima da “zalabia” – massa frita da doçaria Magrebe. Na zalabia são necessárias duas receitas, uma para a massa e outra para a calda, como também acontece com o filhós à pernambucana, pois ambos recebem uma calda feita de açúcar e água acrescida de água de flor de laranjeiras.

Sempre o doce na memória cultural e na memória afetiva do brasileiro e, em especial, os doces para celebrar momentos significativos nas nossas vidas, doces que representam a própria festa.

 

 

 

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