O Dicionário do Doceiro Brasileiro: Os livros de confeitaria do Segundo Império Brasileiro

Lucia Soares1

A história da imprensa, no Brasil, está associada à chegada da Corte Portuguesa, ao Rio de Janeiro, em 1808. Com a promoção da antiga Colônia americana à nova sede do Estado, tornou-se imprescindível a fundação da primeira tipografia para a implantação da Impressão Régia que, além de produzir livros, tinha como objetivo a circulação do primeiro periódico institucional, o Jornal Gazeta do Rio de Janeiro. A possibilidade de circulação da palavra escrita, foi essencial para a divulgação de ideias e o enraizamento do hábito da leitura no paísi. Porém, o analfabetismo da população representou a principal barreira para a expansão do público leitor. Foram as primeiras leitoras – uma pequena parcela de mulheres alfabetizadas – que se tornaram alvo das publicações motivando algumas editoras estrangeiras a se estabeleceram no Rio de Janeiro. O jornal, o principal meio de divulgação do comércio livreiro, também era editado por essas gráficas. Com o tempo, algumas dessas leitoras também de tornaram autoras de livros e de peças de teatroii.

Com a Independência do Brasil, em 1822, e a formação do Primeiro Império, deu-se início à busca de reconhecimento do Estado Brasileiro por Portugal e demais nações, e ao processo de construção de uma identidade para o Brasil, motivada pelo ideal de um Império Independente. De 1840 em diante, com o advento do Segundo Império, essa causa ganhou um novo impulso, tendo no livro Cozinheiro Imperial (Editora Laemmert) publicado exatamente no mesmo ano da entronização de D. Pedro II, como um suposto aliado. Apesar do esforço, nosso primeiro livro de cozinha está longe de ser reconhecido como um manual de cozinha brasileira, tendo, ao invés disso, sugerido “a falta de apreço da elite pela culinária nacional e a necessidade de importação de modelos de comportamento referentes à mesa […]”.iii

O desenvolvimento de uma culinária própria permeou todo o processo de busca por uma identidade nacional, como parte significativa da produção cultural brasileira oitocentista. A adaptação gradual de novas edições do primeiro livro de cozinha publicado no Brasil, e a [tentativa de] consagração da cozinha brasileira do segundo livro, Cozinheiro Nacional (Editora Garnier, 186?), ilustram bem isso iv. Vale salientar que a ideia de construção de uma cozinha brasileira não estava baseada na seleção natural de ingredientes autóctones ou aclimatados, ou em técnicas peculiares, nem mesmo em receitas que reproduzissem a cultura alimentar do país. Pelo contrário, tratava-se de um projeto motivado por interesses políticos para forjar um produto nacional, como explica o sociólogo, Carlos Alberto Doria (2008, p. 9):

[…] a formação da culinária nacional é mais um processo de seleção, auxiliado por expedientes políticos, do que qualquer outra coisa; através dele, por exemplo, acabam prevalecendo ideias de higiene e saúde que o próprio Estado impõe à população como um todo, reprimindo e levando a desaparecer práticas alimentares tradicionais. Portanto, a formação da culinária nacional é também expressão de relações de poder que se estabelecem entre práticas alimentaresv.

Nesse período, os manuais técnicos, à exemplo da Europa, ocuparam um espaço relevante no mercado editorial carioca, um indicativo de que essas obras contendo temas práticos sobre jardinagem, galinheiro ou boas maneiras, etc., tiveram uma boa aceitação da população leitora. Também havia uma tendência das obras culinárias à uma especialização, fixando-se em temas como padaria, embutidos e docesvi. Entretanto, os manuais de confeitaria prevaleceram sobre os demais, pois, o gosto pelo açúcar e sua produção abundante no país, já estavam enraizados, tornando-se uma característica cultural do povo brasileiro. O doce era considerado uma prerrogativa feminina e as obras literárias nessa área, alinhadas com o pensamento político da época, contribuíram para a instrumentalização da cozinha, como parte do projeto modernizador e nacionalista do Segundo Impériovii.


 

I. Os primeiros livros brasileiros de confeitaria

Doceira Brazileira é considerado o primeiro manual de confeitaria do país, publicado pela editora E. e H. Laemmert, em 15 de julho de 1850. Trata-se, portanto, do segundo livro de receitas brasileiro. A autoria de uma mulher, D. Constança Oliva de Lima2, representou uma grande novidade para a época por se tratar de uma originalidade que pode ser entendida como resultado da transformação social em curso. Constituiu uma conquista feminina diante do universo masculino da cozinha profissional. Inovou também ao se dirigir às mulheres que eram as mais diretamente envolvidas com a fabricação de doces, independentemente do nível social. O sucesso editorial desse livro pode ser comprovado pelas sucessivas reedições que obteve, bem como pelo surgimento de novas publicações de outras editoras que copiaram a fórmula pelo Brasil aforaviii.

Na Doceira Brazileira, muitas das receitas continham um apelo nacional pelo uso abundante de ingredientes brasileiros, e pela nomenclatura utilizada, como é o caso da cocada, “Cocada branca de ovos”. Entre as receitas, chama a atenção o “Blanc Manger” ou Manjar Branco que deixa de ser produzido com peito de galinha, como mandava a tradição literária portuguesa, para utilizar maçãs, o que evidencia uma atualização da receitaix.

O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 01

Figura 1: Anúncio do pré-lançamento do livro Doceira Brazileira

Fonte: Jornal do Commercio, 10 de julho de 1850, p. 3.

 


É interessante observar também que o anúncio de pré-lançamento traz uma espécie de estratégia de marketing utilizada como forma de criar no público leitor, a curiosidade e o desejo antecipado de aquisição da obra (Figura 1). Essa fórmula será reproduzida no lançamento de outras obras de confeitaria oitocentistas.

Na carona do sucesso do primeiro, surge nosso segundo livro de confeitaria em 12 de junho de 1875, publicado pela Editora j. G. de Oliveira, intitulado A Doceira Doméstica, de autoria de Anna Correia. O anúncio esclarecia que o livro era apropriado para o uso das cozinhas particulares, e apresentava uma variedade de itens pertencente à arte do confeiteiro e do pasteleiro3. Apesar de incluir no título a palavra “doméstica” que indica a cozinha da casa, da família, a obra também tinha a intenção de abocanhar as incontáveis mulheres que tiravam seu sustento com o fabrico e a venda de doces na rua, atividade muito comum nessa época.

Entre outras coisas, a obra apresentava uma versão da receita de “Manjar Branco” contendo apenas farinha de arroz. E, entre as receitas de cunho nacional, trazia a “Banana ao forno” diferenciando as variedades de banana e utilizando nesse caso para a cocção, a banana da terra; além da “Pamonha maranhense” e o “Cuscuz de milho” nordestino que também disponíveis nesse livro, e ainda a “Conserva de bacuri”x.

Quatro anos depois, em 1879, a Editores Gomes Brandão & C. publicou o terceiro manual de confeitaria, escrito pelo ex-mestre confeiteiro Francisco de Queiroz, com o título O Confeiteiro Popular.

No ano anterior ao seu lançamento, a notícia do livro mereceu uma crônica de Machado de Assis, no Folhetim do Cruzeiro. O escritor que tinha preferência pelos sabores da terra, e era defensor das tradições e da culinária brasileira, gostava de criticar a predileção da elite pelas estrangeirices na culináriaxi. E, nesse caso, dedicou-se a ironizar a decisão do mestre Francisco de compartilhar suas receitas e segredos profissionais, em um contexto de profundas alterações dos hábitos alimentares e de outros aspectos da rotina carioca provocados pela presença inglesa:

Nesta grave situação, anuncia-se o novo manual de confeitaria. Direi desde já que o merecimento do autor é inferior ao que se pensa. Sem dúvida, há algum mérito nesse cavalheiro, que vem desbancar certo sábio do século anterior. Dizia o sábio que se tivesse a mão cheia de verdades, nunca mais a abriria; o confeiteiro tem as mãos cheias de receitas, e abre-as, espalma-as, sacode-as aos quatro ventos do céu, como dizendo aos fregueses: — Habilitai-vos a fazer por vossas mãos a compota de araçá, em vez de a vir comprar à minha confeitaria. Vendo-vos este livro, para vos não vender mais coisa nenhuma; ou, se me permitis uma metáfora ao sabor do moderno gongorismo, abro-vos as portas dos meus tachos.xii

Em sua crítica, Machado de Assis cunha o termo “literatura confeitológica” para caracterizar as recentes publicações nacionais de livros sobre a doçaria.

É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la. No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias faziam renda e todas as semanas faziam doce; de modo que o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca”.xiii

A crônica burlesca de Machado de Assis levanta uma série de questionamentos, inclusive, o sentido pejorativo que pode conter no próprio termo “literatura confeitológica”. E, talvez, o fato de se tratar de um livro com características marcantes de confeitaria francesa e inglesa tenha despertado o desapreço do cronista.

Ao contrário das autoras anteriores (D. Constança e Anna Correia), Francisco de Queiroz demonstrou ter profundo conhecimento de Pâtisserie e Confiserie, e experiência profissional comprovada, pois, foi mestre confeiteiro/conserveiro da Confeitaria Carceller, de propriedade do Sr. João Gonçalves Guimarães que costumava anunciar seu estabelecimento no Almanak Laemmert, como o principal fornecedor da casa imperialxiv.

A casa foi importante ponto de encontro de boêmios, políticos e intelectuais, desde 1824, quando pertencia à José Thomas Carceller e H. Fournierxv. Coincidentemente, Machado de Assis era frequentador dessa Confeitaria e chegou a mencioná-la algumas vezes em sua obra.xvi Assim, é possível que tenha conhecido o famoso confeiteiro lá.

Essa foi a primeira vez que se utilizou o termo “confeitaria” no título de um livro de receitas no país, um diferencial que pode ser percebido também em outros detalhes: o autor definiu sua obra como um manual teórico e prático de confeitaria e pastelaria, dirigido a profissionais e particulares. Para ele, seu pequeno ensaio seria a pedra fundamental para a edificação da pobre arte de confeitaria e pastelaria que tanto necessitava de ajuda. Prometia uma escalada do nível de exigência do leitor, quando se deparasse, posteriormente, com os produtos de luxo do mercado, e a ensinar, [methodicamente], suas melhores receitas. Inclusive, para efeito de comparação, a receita de Manjar Branco proposta em seu livro é à base de amêndoas piladas, leite, açúcar, flor de laranjeira e espessado com gelatinaxvii.

O manual de Francisco de Queiroz, marca muitos pontos para o projeto nacionalista com a divulgação de inúmeras receitas elaboradas com produtos brasileiros. Mas, em contrapartida, apresenta uma grande variedade de itens emblemáticos das confeitarias francesa e inglesa, com explicação minuciosa de técnicas facilmente reproduzíveis pelos leitores, e, portanto, favoráveis aos anseios de europeização da elite brasileira.

O quarto livro, de autor anônimo, foi editado pela Editora Garnier, em 1883, e intitulado o Doceiro Nacional. Na quarta edição de 1895, a obra está dividida em duas partes: o Confeiteiro e o Pasteleiro e traz, como no manual de Francisco de Queiroz, um grande número de páginas apresentando equipamentos, utensílios e ingredientes utilizados na confeitaria, ilustrado com “estampas” (gravuras) que se estendem por toda a obra. No tratamento do açúcar, na produção de xaropes, geleias, doces, compotas, conservas em geral, etc., a obra também reproduz o modelo dos manuais anteriores. Entre as receitas, chama a atenção a de “Corá ou Doce Nacional” um tipo de curau feito com espigas de milho raladas, suco de laranja (mas também podia conter vinho do Porto), e açúcar, cozido por quinze minutos apenas, e depois de distribuído em pratos, era salpicado de canela. Alguns doces são identificados de acordo a região como os “Manuês de Pernambuco”, “Bolo à goyana”, “Bolos de arroz à paulista”, etc. E, nessa obra, a receita de Manjar Branco continha apenas fubá de arroz, leite e açúcar como a apresentada no livro A Doceira Doméstica, porém, depois de cozido, voltava ao forno em pequenos montes polvilhados com açúcar e canela para corarxviii, uma recomendação da receita original do Convento de Celas, em Coimbra.

A primeira edição do quinto livro de confeitaria brasileiro, Diccionário do Doceiro Brasileiro, começa a ser divulgada a partir de 12 de agosto de 1885, data em que aparece o primeiro anúncio no jornal O Paíz (Figura 1). O texto alerta para a utilidade da obra, dedicada às mães de família e, ao invés de listar as receitas por categoria, listou-as em ordem alfabética. Tratava-se, portanto, de um dicionário, gênero de livro que invadiu as livrarias daquela época. Os periódicos, da época, divulgavam uma variedade de dicionários tanto de idiomas quanto técnicos, o que pode ter influenciado o título do livro de Dr. Antônio José de Souza Rego. De imediato, seu trabalho já apresentava esse diferencial. Na página de rosto do livro se lê: “Milhares de receitas, pela maior parte novas, de doces de todas as qualidades, obra de maior utilidade até hoje conhecida e dedicada especialmente às mães de famílias”. Eram receitas de uso pessoal que foram coletadas ao longo de alguns anos até a publicação.

De qualquer modo, não deixa de causar espanto, um livro escrito por um certo Dr. Antônio José de Souza Rego, bacharel em Letras pelo Imperial Colégio Pedro II (1849), que cursou a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, concluindo em 1855. Ingressou na Marinha como médico-cirurgião, e tornou-se oficial da Corte de D. Pedro II, conquistando a patente de Major Honorário, em 1877xix. Muito popular na imprensa pelo exercício das mais diversas atividades que exercia na Metrópole, porém, tão distante desse universo particular da confeitaria. No entanto, apesar da importância do repertório de receitas apresentado, infelizmente, o livro não mereceu a devida atenção da crítica daquela época.

Nos primeiros dias e meses posteriores ao lançamento do livro Dicionário do Doceiro Brasileiro, observa-se a divulgação de um tipo de “release” da época (Figura 2) e a permanência de anúncios nos periódicos locais (Figuras 3,4,5 e 6).

 

O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 02
O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 03

Figura 2: Primeiro anúncio da 1ª edição

Fonte: O Paíz, 12/08/1885

Disponível em: O Paiz (RJ) – 1884 a 1889 – DocReader Web (bn.br)

Acesso em: 17/08/2022

Figura 3: publicação na mídia da 1ª edição

Fonte: Gazeta da Tarde 16/08/1885

Disponível em: Gazeta da Tarde (RJ) – 1880 a 1901 – DocReader Web (bn.br)

Acesso em: 17/08/2022

 


A segunda edição do Dicionário começa a ser anunciada no Jornal do Comércio em 14 de setembro de 1891 (Figura 7), e continua nas próximas semanas (21 e 28/09) no mesmo jornal, e no O Paíz, em 21/09/1891. Essa edição ocorreu um ano e meio após a morte do Dr. Souza Rego, em 10 de dezembro de 1889, e tem como principal novidade, a inclusão de gravuras, uma tendência observada na obra Confeiteiro Popular reproduzida pelo Doceiro Nacional.

Em 1892, saiu a terceira e última edição do livro, a que sobreviveu ao tempo e ainda se encontra disponível para pesquisa em nossos dias. Infelizmente, não foi possível encontrar o anúncio correspondente ao lançamento dessa edição, nos periódicos locais.

O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 04
O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 05

Figura 4: Anúncio/2 da 1ª edição

Fonte: Jornal do Comercio, 26/08/1885

Disponível em: Jornal do Commercio (RJ) – 1880 a 1889 – DocReader Web (bn.br)

Acesso em: 17/08/2022


 

Figura 5: Anúncio/3 da 1ª edição

Fonte: Diário de Notícias, 03/09/1885

O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 06
O Dicionário do Doceiro Brasileiro - Museu do Açúcar e Doce
Figura 07

Figura 6: Anúncio/4 da 1ª edição

Fonte: Jornal do Comercio, 19/10/1885

Figura 7: Anúncio/5 da 1ª edição

Fonte: Jornal do Comercio, 11/11/1885

   

A terceira edição contava com 612 páginas contendo “milhares de receitas”, de acordo com a folha de rosto do livro que difere dos demais livros publicados por não estar dividida em unidades. As receitas seguem de acordo com a ordem alfabética, e são, como reforça o texto inicial, “pela maior parte novas”, porém, observa-se que muitas delas também estão disponíveis em obras anteriores. Pode ter havido alguma alteração no repertório e no número delas, já que a 2a edição (Figura 8) contava cerca de duas mil receitas, como assinala o anúncio, apesar de que os textos ainda são os mesmos de 1885.

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Figura 08

Figura 8: anúncio da 2ª Edição

Fonte: Jornal do Comercio, 14/09/1891, p.8

 


Chama a atenção, nessa obra, o número de receitas compiladas de alguns tipos de doce, como por exemplo, as de bolo e bolos que compreendem 77 páginas, somando 211 receitas, sem contar as de manauês que são 19, nem as 38 de pães de ló que fazem parte dessa classificação. No entanto, muitas receitas de pão de ló – “o mais histórico dos bolos caseiros”, de acordo com Luís da Câmara Cascudoxx – contêm vários outros ingredientes como aipim e cará ou grande quantidade de manteiga, o que indica um empréstimo inadequado do nome já, que a base do pão de ló é ovos, açúcar e farinha de trigo, podendo ser acrescido de um pouco de manteiga ou ser adicionado de leite, água ou suco. Em relação aos bolos, muitos deles fazem referência à sua origem como Bolo Carioca, Bolo Paulista, Bolo do Maranhão, Bolo Mineiro, etc., e até mesmo o Bolo do Brasil. Esse bolo produzido com aipim ralado, bem lavado espremido, acrescido de açúcar, manteiga e coco, e depois enrolado na folha de bananeira para assar. Essa foi a origem de muitos bolos brasileiros, como o Bolo Mané Pelado ou Bolo de aipim, macaxeira ou mandioca, presente até hoje em todo o país. A recomendação da massa enrolada na folha de bananeira para assar tem origem no Cubu de origem africana, posteriormente, chamado de João Deitado ou Mata-homem, etc., também produzidos com fubá de milho, e tão presentes na culinária caipira até hoje.

Também aparecem duas receitas de Bolo de bacia à moda de Domingos Rodrigues, autor do primeiro livro português de cozinha, no séc. XVIIxxi. Esse bolo apesar de ter uma estrutura tão diferente dos demais da época, por empilhar tiras delgadas de massa sovada alternadamente com manteiga, marzipã e calda de açúcar, creme de manjar branco e doce de ovos moles, etc., acabou emprestando o nome à uma classificação de bolos brasileiros coloniais que utilizavam bacias, isto é, eram assados em formas. Até hoje encontramos bolo de bacia Brasil afora.

O livro apresenta, com exclusividade, a receita de Mãe Benta (Figura 9) do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro, onde as freiras confeiteiras produziam doces afamados como bons-bocados, mães-bentas, cocadas, suspiros, filhós, pastéis de Santa Claraxxii além de desmamados e canudosxxiii.

Outra novidade é que a obra traz algumas receitas que utilizam um ingrediente introduzido no Brasil, em 1874: a Maisena. São exemplos: Bolo de Maisena, Pão de ló de Maisena, e o Manjar Branco que em uma das cinco versões apresentadas, é produzido com o ingrediente (Figura 10).

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Figura 09
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Figura 10

Figura 9: Receita de Mãe Benta

Fonte: Dicionário do Doceiro Brasileiro, 1892. p. 389

Figura 10: Receita de Manjar Branco

Fonte: Dicionário do Doceiro Brasileiro, 1892. p. 397

 


Observa-se, ainda, a introdução da colher de sopa, medida que permanece nos textos de receitas atuais, além de apresentar maior clareza na descrição do modo de preparo. As demais receitas de manjar são: uma receita com farinha de arroz, e mais três de manjares produzidos com amêndoas, sendo duas delas com gelatina e uma com peito de galinha, uma permanência influenciada, talvez, pela facilidade de acesso ao livro Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, publicado pela primeira vez em Portugal em 1680, e reeditado no Rio de Janeiro, em 1858.

O Dicionário disponibiliza duas receitas de canjica contendo ovos (Figura 11), o que não corresponde ao modo de consumo difundido no Brasil. Porém, como a canjica foi uma adaptação da receita de arroz doce portuguesa aos ingredientes nacionaisxxiv, há a possibilidade de enriquecê-la, inspirando-se na variedade de receitas disponíveis desse acepipe secular.

 

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Figura 011

Figura 11: Receitas de Canjica

Fonte: Dicionário do Doceiro Brasileiro, 1892. p. 269.

 


O livro contempla também quatro tipos de cocada: abóbora, branca, de ovos e puxa o que corresponde apenas à uma pequena amostra das opções possíveis desse doce que constitui o que se pode chamar de um doce tipicamente brasileiroxxv. Até hoje são vendidas pelas ruas, estão presentes nas festas populares e em muitas mesas por todo o país.

São inúmeras as contribuições dessa obra para o estudo da confeitaria brasileira, tanto que a Editora Senac São Paulo lançou uma nova edição em 2010, organizada pelo antropólogo, Raul Lody, contendo 940 receitas da terceira edição, de 1892. Merece destaque os importantes comentários que contextualizam a importância desse livro no cenário político, econômico e cultural da época.

De acordo com Lody, o Dicionário retrata o contexto social e econômico de um país escravocrata, em mobilização pela república, sob a influência da Revolução Industrial, dos movimentos artísticos e da busca do bem comer e bem beber na Belle Époque. Seu relançamento baseia-se na justificativa de que o livro do Dr. Antônio José de Souza Rego é “um rico e amplo memorial dos processos culinários, ingredientes, receitas e indicações de uso e de consumo do doce no Brasilxxvi”. Enfim, a edição paulistana contribui para a valorização de cada registro e bem como para a perpetuação dessa obra que alicerça nossa doçaria.

Raul Lody faz parte de grande quantidade de homens que pesquisam e engrandecem nossa confeitaria. O número de estudiosos aumentou significativamente nos últimos anos, embora a confecção de certos doces e a relação doce e mulher ainda prevaleça em muitos segmentos de nossa sociedade.

Em 1939, o sociólogo pernambucano de projeção internacional, Gilberto Freyre, lançou o livro Açúcar: uma sociologia do doce com receitas e bolos e doces do Nordeste do Brasil, enaltecendo a importância dos doces e das receitas pernambucanas, e desafiando os limites do papel masculino daquele tempo. Freyre também pesquisou a devastação cultural provocada pela invasão inglesa em Recife, e organizou o Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo como tentativa de reanimar a arte dos quitutes e dos doces pernambucanos, reconhecido patrimônio cultural do país que estava se perdendo: “Toda essa tradição está em declínio ou, pelo menos, em crise, no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”xxvii.

Em resposta à crônica sobre a “literatura confeitológica” de Machado de Assis, Freyre afirmou:

Daí o que Machado de Assis escreveu do Rio de Janeiro poder ser aplicado, com ainda maior exatidão sociológica, ao Nordeste: a arte do doce teria alguma coisa de “princípio social”. Esse “princípio social” foi, no Nordeste, não só o açúcar, da generalização do padre Antônio Vieira, mas, de modo específico, o doce, o bolo, o quindim feito com açúcar por aquelas mulheres que todos os dias faziam renda e, todas as semanas, faziam doce: umas nas suas casas-grandes ou nos seus sobrados; outras, nas suas casas de porta e janela e até nos seus simples mocambos.xxviii

Ele ainda se deu ao trabalho de pesquisar e divulgar em seu livro, uma relação de homens ilustres e seus doces favoritos, incluindo o próprio Machado de Assis que gostava de doce de coco4. Desconfio que tudo isso foi só para mostrar como o doce também é parte importante da vida dos homens…


II. Considerações finais

A maior contribuição dos manuais de confeitaria editados no Brasil na segunda metade do séc. XIX é, sem dúvida, a transformação do processo de transmissão do conhecimento culinário, com a ampliação do nível de abrangência e a perpetuação por meio do livro impresso. São obras que reproduzem conhecimentos específicos, inerentes à fabricação de doces, bem como suas normas e critérios de consumo. Também retratam a circulação de produtos, os encontros culturais, os hábitos à mesa, as sociabilidades de um determinado período, constituindo um importante registro histórico, fonte de pesquisa para o estudo da doçaria brasileira. A receita culinária constitui, portanto, um meio de comunicação capaz de possibilitar a descoberta da história e da cultura de um povo e um país.

O aproveitamento de frutas e de outros ingredientes nacionais, adaptados ou autóctones, utilizados na produção de doces, não é apenas uma continuidade, mas está em constante desenvolvimento com a valorização crescente desses produtos nos novos discursos que orientam a gastronomia atual.

O hábito do brasileiro de consumir doces reafirma-se na quantidade de confeitarias e de profissionais que vivem de seu fabrico e venda, das pequenas cidades aos grandes centros urbanos, gerando trabalho e renda, como parcela importante da economia nacional. A permanência de determinados doces encontrados nesses livros, como os bolos e pudins, por exemplo, pode ser constatada pelo aumento do número de casas especializadas nesses itens que têm surgido por todo o país.

Evidentemente, o anacronismo, chama a atenção em todas as obras citadas, desde os utensílios e equipamentos utilizados, aos modos de preparo, o tamanho das receitas e, no que se refere às proporções de ingredientes como açúcar, ovos, manteiga, etc. As normas de higiene têm banido da cozinha muitos dos utensílios utilizados naquele período. As novas tecnologias, a atualização de técnicas e processos de produção têm impactado no tempo de preparo e no aperfeiçoamento dos resultados. A descontinuidade de muitas das receitas, deve-se, sobretudo, à orientação de novas estéticas de gosto, enquanto as porções dos produtos se relacionam diretamente com a redução das dimensões das moradias e do número de membros das famílias.


REFERENCIAIS

1 Lucia Helena Soares de Lima é doutora em História da Ciência (PUC/SP), pesquisadora independente da Confeitaria Brasileira, e autora de inúmeros artigos sobre o assunto. Email: chefluciasoares@gmail.com

2 Tudo leva a crer que a educadora D. Constança não foi a verdadeira autora dessa obra. Os editores incumbiram-na da reformulação das receitas de Sá Dona, como era chamada a jovem senhora, Anna Maria das Virgens Pereira Rabello, uma sinhazinha macaense frequentadora da Corte que teria emprestado seus conhecimentos gastronômicos para o livro, mas manteve-se no anonimato (FROSSARD, Larissa e GAVINHO, Vilcson, org. Macaé nossas mulheres, nossas histórias. Macaé, RJ: Macaé Offshore, 2006, pp. 199-200).

3 Jornal do Comercio RJ, 12/06/1875, p.6

4 Preferências de brasileiros ilustres (políticos, intelectuais e artistas. etc.) por doces ou sobremesas açucaradas in: FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce com receitas e bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 189.


i MEIRELLES, Juliana Gesuelli. A Gazeta do Rio de Janeiro e o impacto na circulação de ideias no Império luso-brasileiro (1808-1821) in: Ana Paula Torres MEGIANI & Leila ALGRANTI (Orgs.). O Império por escrito: Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2009, pp. 565-566.

ii BESSONE, Tania. “As leitoras no Rio de Janeiro do século XIX: a difusão da literatura”. Revista Gênero – periódicos UFF. Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2005.

iii ALGRANTI, Leila Mezan. “O mestre-cuca sem nome”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, ano 1, n° 5, p.72-77, nov. 200 01/11/2005, p. 77

iv WÄTZOLD, Tim. Proclamação da cozinha brasileira como parte do processo de formação da identidade nacional no Império Brasileiro – 1822 – 1889. Tradução de Juliane Pereira da Costa. Belo Horizonte: TCS Editora, 2012, pp. 291-292.

v DÓRIA, Carlos Alberto. “Cozinha nacional antes da feijoada”. In: COZINHEIRO Nacional, ou, Coleção das melhores receitas das cozinhas brasileiras e europeias: para preparação de sopas, molhos, carnes… São Paulo: Ateliê Editorial: Senac, 2008, pp. 7-26.

vi COUTO, Cristiana. Arte de cozinha: alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (XVII-XIX). São Paulo: Editora Senac SP, 2007, p. 134.

vii WÄTZOLD, op. cit., pp. 243-244.

viii MONTELEONE, Joana. O livro de receitas Doceira Brazileira: Açúcar, gênero e mercado editorial no rio de janeiro Imperial. In: Brasileiras na Paisagem e na Passagem do Oitocentos. Passages de Paris No 20 (2020.2): Disponível em: https://www.apebfr.org/ojs/index.php/passadesdeparis/article/view/36/34

ix WÄTZOLD, op. cit., p. 245.

x Ibid, pp. 250-252.

xi BELUZZO, Rosa. Machado de Assis: relíquias culinárias. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 115.

xii MACHADO de Assis. Crônica 1 – 2 de junho de 1878 – Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais. In: Machado de Assis. John Gledson & Lúcia Granja (Orgs.). Notas semanais. Campinas: Editora Unicamp, 2008, pp. 90-91.

xiii MACHADO de Assis. Crônica 1 – 2 de junho de 1878 – Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais. In: Machado de Assis. John Gledson & Lúcia Granja (Orgs.). Notas semanais. Campinas: Editora Unicamp, 2008, pp. 90-91.

xiv BELUZZO, op. cit., p. 73.

xv BELUZZO, op. cit., p. 73.

xvi https://riomemorias.com.br/memoria/confeitaria-carceller/

xvii QUEIROZ, Francisco de. O Confeiteiro Popular ou Manual theórico e prático de confeitaria e pastelaria para nso dos professionaes e particulares [sic]. Rio de Janeiro: Editores Gomes Brandão & C. 1879, pp. 214-215.

xviii Doceiro Nacional ou Arte de fazer todas as qualidades de doce. Rio de Janeiro: H. Garnier Sucessor, 4ª edição, 1895, p. 85.

xix Gazeta de Noticia, 18/04/1887, p. 1.

xx CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, vol. 2, 1968, p. 348.

xxi RODRIGUES. Domingos. Arte de Cozinha dividida em quatro partes. Rio de Janeiro: Editor J. J. Barroso e Cia, 1858, p. 136.

xxii BELUZZO, op. cit., p. 51.

xxiii VILLAÇA, Antônio Carlos. O convento da ajuda in: COSTA, Luiz Antônio Severo et al. Brasil 1900-1910. Apresentação: Plinio Doyle. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1980, p. 69.

xxiv ALGRANTI, Leila Mezan. Os doces na culinária luso-brasileira: Da cozinha dos conventos à cozinha da casa “brasileira” séculos XVII a XIX in: Anais de História de Além-mar, vol. VI, 2005, pp. 151-152.

xxv ALGRANTI, op. cit., vol. VI, 2005, p. 144.

xxvi LODY, Raul. “Doce Comida”. in: Dr. Antônio José de Souza Rego. Dicionário do Doceiro Brasileiro. Raul Lody (Org.) São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010, p. 9.

xxvii FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 7.ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. p.47-75.

xxviii FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce com receitas e bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2020, 1 edição digital, Prefácio da 3ª edição, p. 26.