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Gastronomia sertaneja - Foto Eduardo Gazal

Produção e Consumo de Alimentos em Propriedades Rurais no Sertão de Pernambuco

Texto e fotos de Eduardo Gazal
Resumo de trabalho acadêmico realizado em 2015

Relato oral sobre as fazendas Varzinha e Santa Maria, entre os anos de 1935 a 1965

Em entrevistas concedidas por Thereza Soares da Silva, relatando fatos sobre a produção e consumo de alimentos em propriedades rurais no sertão pernambucano, o presente estudo registra um pouco da culinária sertaneja. Engloba aspectos culturais e econômicos, utilização de ingredientes e resgata algumas receitas. Mapeia também a produção doméstica de alimentos destinados à manutenção da vida humana e apresenta produtos alimentícios artesanais que geravam renda financeira às famílias.

O estudo teve inspiração literária a partir de relatos narrados por Luís da Câmara Cascudo em seu livro História da Alimentação no Brasil. A depoente conviveu com a realidade de propriedades rurais nas cidades de Sertânia e Afogados da Ingazeira, localizadas no Sertão de Pernambuco, entre os anos de 1935 e 1965. A partir deste cenário, podemos futuramente elaborar um estudo mais aprofundado, comparando a realidade da época retratada com os dias atuais.

INTRODUÇÃO

A preservação da memória, o registro de hábitos alimentares e produtos consumidos à época são os objetivos deste trabalho. Tem como base relatos prestados por Thereza Soares da Silva, que conviveu com a realidade de duas propriedades rurais entre os anos de 1935 e 1965. Nascida em 1928, no Estado da Paraíba, a depoente vivenciou por três décadas a realidade de fazendas situadas no sertão pernambucano.

A oralidade é fator preponderante deste estudo, preservando experiências reais vividas naquela época e naquele contexto.

O trabalho consegue identificar alimentos produzidos nas regiões estudadas, tanto em regime de abundância de água quanto nas épocas de contingência deste recurso natural. Também aborda hábitos alimentares, utensílios domésticos, fabricação de produtos alimentícios e mostra a diversidade e riqueza do sertão nordestino.

A literatura fala pouco sobre a região pesquisada. Existem poucos estudos e bibliografias referentes à temática, carência ainda maior quando o enfoque é a região específica deste trabalho. Como base bibliográfica, a obra que norteia este estudo é o livro História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo.

Trabalhos acadêmicos contribuíram para elucidar e fundamentar essa análise e também serviram para embasar questionamentos na fase de pesquisa e coleta de dados. A relevância deste trabalho está na necessidade de enriquecer, com informações precisas, estudantes e pesquisadores interessados na origem da gastronomia sertaneja de Pernambuco. Dentz, (2011), menciona em uma publicação acadêmica:

Estudos sobre gastronomia no meio acadêmico são recentes, e uma vez verificando-se o período, observa-se que os interesses se originam com o crescimento da oferta de cursos de bacharelado em Turismo, e de cursos para técnicos e tecnólogos em Gastronomia nas universidades e centros universitários do Brasil. (DENTZ, 2011)

COLETA DE DADOS

A metodologia utilizada para obter as informações necessárias à realização deste estudo foi a da entrevista padronizada, com roteiro previamente estabelecido de perguntas. Entre os meses de setembro de 2014 e março de 2015, ocorreram várias conversas com o objetivo de conseguir informações sobre a realidade vivida nas propriedades rurais.

As perguntas elaboradas foram as seguintes:
Qual o horário das refeições e o que era servido?
Quais animais destinados ao consumo humano eram criados nas propriedades?
Quais espécies vegetais eram cultivadas e se aplicavam à manutenção da vida dos moradores?
Quais alimentos eram comprados para abastecimento humano?

Durante as entrevistas obtive relatados importantes que complementavam as perguntas previamente elaboradas. Foram registrados com o objetivo de documentar hábitos e métodos de produção de alimentos daquela época e apresentados nos apêndices deste estudo.

RESULTADOS

Os depoimentos colhidos nas entrevistas foram o eixo principal para a coleta de dados deste estudo. São relatos que merecem ser preservados, devido à época que ocorreram e também a região do sertão nordestino que retratam.
A entrevistada é uma testemunha da história e o fato de conviver em nossos dias acrescenta a este estudo um fator relevante e de máxima importância para a documentação histórica da gastronomia.

Veremos a seguir as respostas obtidas através das entrevistas:

Em relação aos horários das refeições e o que era servido foi apurado que aproximadamente às cinco horas era servido o café da manhã. Geralmente composto de coalhada escorrida com nata e açúcar ou coalhada fresca com rapadura. Bolacha D’água, cuscuz com ovos, leite de vaca fervido e café preto, completavam a primeira refeição. Sobre a coalhada e sua importância ao sertanejo, menciona Cascudo (2007):

O leite coalhado é imemorial, saboreado na Grécia e Roma, apreciado pelos deuses olímpicos. Por toda a Ásia é conhecido, do sul, centro e norte, acidulado com essências aromáticas ou in natura, como se usa no Brasil inteiro. (CÂMARA CASCUDO, 2007, p. 27)

Em outra menção do autor versando sobre a coalhada temos este trecho:

Os caçadores árabes e asiáticos levavam-na em sacos de couro, como o sertanejo brasileiro a guarda para fazer o queijo. Era alimento refrescante e tonificador. (CÂMARA CASCUDO, 2007, p.27).

O almoço, servido aproximadamente às onze da manhã, principal refeição do dia, apresentava uma combinação de receitas e ingredientes que podemos resumir assim:

Entre os alimentos de origem vegetal, diariamente eram servidas as seguintes opções: feijão macassar acompanhado de arroz branco escorrido ou arroz de leite. Os tubérculos como a macaxeira, inhame ou batata doce, eram previamente cozidos como manda a tradição culinária nordestina. Alface e tomate cereja eram consumidos in natura, temperados com vinagre e sal.

A farinha de mandioca originava a farofa de raspa de tacho, que surgia da mistura com a borra que se formava nas assadeiras de queijo manteiga. Havia também a farofa d´água que era resultante da adição de manteiga de garrafa, cebola e cebolinha à farinha de mandioca.

O consumo de carnes era obrigação diária na composição do cardápio sertanejo.
As fazendas se destinavam ao pastoreio bovino. Porém, o consumo de carne bovina fresca ou verde como é chamada no Nordeste do Brasil não existia. A carne de sol era utilizada com muita frequência.
Os caprinos eram muito apreciados devido à facilidade de adaptação ao ambiente árido do Sertão. Receitas como o bode guisado e o bode assado eram comuns no dia a dia.
A criação de suínos era importante para a manutenção da vida humana, além de fornecer renda extra para o custeio das propriedades. Receitas como o porco guisado e porco assado eram costumeiras. Em dias de festa ou domingos aparecia o pernil assado ou a buchada de bode.
As aves eram consumidas em dias comuns e em ocasiões especiais. Galinha guisada era prato corriqueiro. Pato assado e perua recheada compunham o cardápio dos domingos.
Havia também receitas de frango capado e galo capão. Um cuidado especial era necessário para manter a qualidade destas aves. Aproximadamente três dias antes da sua utilização culinária, a aves eram retiradas do terreiro e confinadas em galinheiros. Alimentadas com milho apenas, passavam por um processo de purificação e só então eram consumidas.
Miúdos de galinha eram preparados em forma de guisados.

Na fazenda Varzinha encontrava-se um dos principais açudes da região. A pesca era praticada como atividade de lazer. Consequentemente os peixes capturados transformavam-se em excelentes quitutes para os domingos.
Sobre os peixes e os açudes, encontramos uma esclarecedora referência de Cascudo (2007), onde o hábito da pescaria, além de fornecer alimento muito apreciado, era motivo de encontro entre famílias e amigos:

Depois da construção dos açudes, 1918 em diante, em certa época do ano faziam pescarias, diurnas ou preferencialmente noturnas, quase uma festa. (CÂMARA CASCUDO, 2007, p. 665)

História da Alimentação no Brasil, Câmara Cascudo
História da Alimentação no Brasil, Câmara Cascudo

Antes das refeições, a cachaça era a bebida predileta, saboreada com gotas de limão.
Durante as refeições se bebia apenas água. Após o almoço sempre era servido o café preto.
As fazendas recebiam vinho da marca Tito Silva, provenientes da cidade de João Pessoa no Estado da Paraíba.
O único licor fabricado nas propriedades era feito a partir do café.

Aproximadamente às quinze horas havia a merenda ou lanche da tarde.
Bolos de milho e macaxeira eram os mais comuns. Pão-de-ló, bolo feito com farinha de trigo aparecia à mesa com menos frequência, mas era muito apreciado. Em seu livro a Saga do Açúcar, Quintas (2010) enaltece o Pão-de-ló.

O pão-de-ló é no Nordeste um clássico, como em Portugal continua sendo; nunca perdeu seu reinado, desde sempre esteve na hierarquia das melhores casas lusitanas.(QUINTAS, 2010, p.218)

Os bolos eram servidos acompanhados de queijo manteiga.
Banana da terra cozida e frutas in natura tinham presença obrigatória. Caju, goiaba, jaca, manga e graviola eram as mais consumidas. O doce de goiaba era o mais apreciado.
Não havia o costume de consumir sucos, porém o sumo da graviola era bebida conhecida. Café preto e leite de vaca completavam a merenda.

O jantar ou ceia noturna era servido por volta das dezoito horas. Cuscuz com leite e nata, macaxeira cozida com manteiga de garrafa eram corriqueiros. Coalhada escorrida com nata e açúcar era receita diária. As carnes de bode assado ou guisado eram as opções de proteínas para a noite. Os bolos de macaxeira ou de milho eram saboreados com fatias de queijo manteiga. Para beber café preto.

Por volta das vinte e uma horas, algum dos doces da merenda, acompanhados de abacaxi in natura, determinavam a derradeira etapa da alimentação diária.

Sobre o horário das refeições, escreve Cascudo (2007) em História da Alimentação do Brasil:

A divisão do tempo para alimentar-se provirá do estabelecimento regular da agricultura; a partida matinal, o regresso ao meio dia, e a recolhida nas primeiras horas noturnas.(CÂMARA CASCUDO, 2007).

Em resposta sobre o questionamento a respeito dos produtos produzidos nas fazendas, obtive os seguintes dados:
Alguns produtos eram manufaturados nas propriedades. O chouriço de porco na versão adocicada era um deles. A manteiga acondicionada em latões de vinte litros também contribuía com a arrecadação das propriedades.
As propriedades rurais descritas neste estudo eram produtivas e garantiam quase totalmente a provisão de alimentos para os proprietários, seus familiares e trabalhadores. A necessidade de aquisição de gêneros alimentícios era relativamente pequena.

Nos períodos de estiagem a ração diária e a variedade de alimentos sofriam restrições severas. Para conviver com a realidade sertaneja foram construídos silos de armazenagem para grãos de milho e feijão.
As construções demonstravam como as fazendas eram modernas para a sua época.

Sobre os depósitos para guardar grãos, Cascudo (2007) relatava no século passado:

Relativamente modernos são os silos armazenadores de grãos. Compram feitos, armando-os nos locais apropriados ou improvisam, com folha-de-flanders. São métodos de adaptação e não de tradição. (CÂMARA CASCUDO, 2007, p. 430)

Apenas a carne de sol era comprada nas feiras, os outros alimentos de origem animal eram oriundos das fazendas e abasteciam as casas dos proprietários e funcionários, garantindo o suprimento nutricional dos seus habitantes. Sobre a importância da carne de sol para o povo nordestino, menciono Recine e Radaelli em trabalho escrito como apoio à série TV Escola do Ministério da Saúde:

A carne de sol é alimento indispensável no Nordeste e parece ter tido origem no hábito indígena de assar a caça para conservá-la por algumas semanas. A industrialização da carne de sol, comum no Rio Grande do Norte e Ceará, teve início no final do século XVII (RECINE e RADAELLI, p. 23)

Entre os alimentos de origem vegetais consumidos, a necessidade de aquisição se resumia aos seguintes itens: farinhas de trigo e de mandioca, arroz e açúcar. Os grãos de café eram provenientes da cidade de Taquaritinga do Norte, no Agreste de Pernambuco. Vinham de propriedades pertencentes ao avô da entrevistada. A aguardente de cana de açúcar e o vinho eram adquiridos no comércio local. O abacaxi não se aclimatava na região do Sertão, mas era muito apreciado e consumido in natura, sendo comprado para o abastecimento dos residentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a principal atividade mercantil das propriedades rurais fosse a criação de gado, identifiquei uma variedade maior de gêneros alimentícios produzidos nas fazendas em relação ao que imaginei no início da pesquisa.
Demonstra que a região quando abastecida de água ou em regime de chuvas, torna-se muito produtiva. A dieta é variada, possibilitando a elaboração de muitas receitas, garantindo a nutrição dos habitantes naqueles tempos.
As fazendas eram pensadas para produzir durante todo o ano, respeitando as sazonalidades das espécies vegetais em épocas úmidas e secas.

Comprava-se poucos alimentos em relação às necessidades diárias de suprimentos.
Durante as conversas com a depoente, várias informações foram prestadas, acrescentando ao trabalho um conteúdo bastante abrangente.

Espero que o presente estudo possa contribuir com questionamentos futuros e traga uma visão do que foi a alimentação naquela região. Acredito que, numa averiguação posterior em relação ao tema aqui abordado, seja possível um raciocínio mais aprofundado. Incluir a alimentação disponível aos empregados seria um bom tópico de investigação.

Podemos também comparar a realidade da época retratada com os dias atuais. Tal comparação deveria ser feita em estudos posteriores para identificar semelhanças e diferenças importantes. Descobrir se tradições foram mantidas ou o tempo se encarregou de aniquilar hábitos e costumes, seria um excelente ponto de partida para um questionamento a respeito da região estudada.


APÊNDICES

APÊNDICE A – Relatos de temas variados

Durante as entrevistas surgiram fatos que fugiam às perguntas previamente elaboradas. Porém, são pertinentes ao tema principal. Devem ser registrados, objetivando a preservação histórica.

Relato sobre a estrutura das propriedades:
As propriedades rurais estudadas apresentavam diferenças estruturais dignas de nota.
Na fazenda Varzinha, durante muitos anos, encontrava-se o maior açude da região.
Alguns equipamentos e utensílios de cozinha, considerados modernos para a época, foram implantados nesta propriedade.

O fogão inglês, forjado em metal, contrastava com os lendários fogões à lenha manufaturados em tijolo e barro.
Era o início da modernização da cozinha, recebendo utensílios fabricados em indústrias onde o ferro aparece como principal elemento estruturador.
A geladeira à querosene, considerada um item de avanço tecnológico, foi introduzida na Varzinha.
Os silos de flanders, para armazenamento de milho e feijão, eram exemplos de ações de vanguarda.
Nesta propriedade se instalou uma edificação para produção de derivados do leite.
Era chamada casa do queijo.
Foi edificada em local distante em relação à casa da família.
Os objetivos eram os seguintes:
Afastar os fortes odores da produção do queijo e aproveitar o soro do leite, que seguia através de encanamentos para enriquecer a ração alimentar servida aos suínos.

Relato sobre a louça inglesa:
Entre os presentes mais importantes para ofertar à dona da casa, estava o conjunto de peças de porcelana para café, almoço e jantar.
Anexei neste trabalho fotos de algumas peças da louça inglesa, que se mantém perfeitamente preservada.
Uma frase da depoente chama a atenção:
¨Para onde íamos, a louça ia também¨
Refere-se ao fato de acompanhar a família nas mudanças de uma propriedade para outra.

Gastronomia sertaneja - Foto Eduardo Gazal
Gastronomia sertaneja – Foto Eduardo Gazal

Relato sobre a produção de uvas no sertão nordestino:
Na fazenda Santa Maria foram introduzidas parreiras. A produção de uvas aparece em uma região onde seu cultivo seria pouco provável.
A depoente relata que era uma novidade para a época e recorda-se de colocar saquinhos de algodão, encobrindo os cachos ainda jovens, visando preservar a integridade e o crescimento sadio dos frutos.
A espécie cultivada era a uva verde de mesa.

Relato sobre a colheita da cana:
Os meses de setembro e outubro são marcados pela colheita da cana de açúcar.
Seu cultivo não era atividade de grande vulto, porém, bastava para refazer o estoque de rapadura.
Aproveitavam a moagem para sorver o caldo da cana como refresco.
A partir do melaço da cana aquecido poderia ser feito o alfenim, doce apreciado pelos jovens.
A sua feitura era dolorosa, o melaço quente era manipulado para dar forma aos docinhos.
A depoente declara:
“Ninguém queria fazer, era difícil aguentar o calor, dava calos nas mãos”

Relato que insere as propriedades dentro de um contexto ecológico evoluído para sua época:
Eram proibidas derrubadas de árvores como a quixaba e o umbuzeiro.
A caça de animais de grande porte não era permitida nas propriedades. O veado da caatinga era um exemplo.
A colheita de mel era feita na época de floradas das espécies vegetais nativas.
As abelhas são muito abundantes no ambiente sertanejo. Não havia a necessidade do confinamento das abelhas em caixas.
Para evitar que o gado fosse se multiplicando através das gerações, carregando a mesma informação genética, os touros reprodutores, eram trocados entre os fazendeiros da região.
Aproveitando a baixa das águas dos açudes, se intensificava a produção de vegetais. O solo úmido propiciava o plantio das hortas evitando a necessidade de irrigação.

Relato sobre a venda de goiabas para a fábrica denominada Peixe na cidade de Pesqueira:
Na fazenda Varzinha, o cultivo de goiabeiras era importante para a família.
A produção dos frutos possibilitava excelente renda.
As cargas de goiabas in natura tinham destino certo: a fábrica Peixe.
Durante muitos anos a fábrica foi responsável pela industrialização de doces e gerava empregos para habitantes da cidade e municípios vizinhos.


APÊNDICE B – Frases pronunciadas pela entrevistada

Algumas frases pronunciadas pela entrevistada durante as conversas:
. Água para matar a sede e depois café.
. Naquela época tudo era difícil, mas dava de tudo.
. Não havia macarrão, pão se comprava somente aos sábados, na feira.
. A batata doce era mais consumida que a macaxeira.
. Tempero de peixe é: sal, limão e cebola.
. A vida era muito sofrida, tinha época de feijão e milho. Isso porque papai guardava.
. Na moagem da cana o padre vinha rezar a missa.


APÊNDICE C – Receita

Chouriço Doce
Relatado por Thereza Soares da Silva

Modo de preparar:

O saber fazer deste doce, disputado entre irmãos até as últimas colheradas, é o objetivo deste relato.
As proporções dos ingredientes ficaram em cadernos de receitas perdidos pelos familiares da depoente.
Porém, para registrar o modo de preparo, recorremos à memória de Dona Thereza Soares.
Segue o passo a passo da preparação desta iguaria:
O doce é feito a partir da junção de rapadura derretida e sangue de porco. A gordura da barriga do suíno era adicionada aos poucos.
Era elaborado em tacho de cobre que repousava sobre as chamas de um fogão à lenha.
Os três elementos básicos recebiam cravo, canela e pimenta do reino.
O tempo de preparo se aproximava ao intervalo entre o café da manhã e o almoço.
Havia a necessidade de revezamento entre as mulheres em volta da preparação do doce.
A colher de pau de cerca de um metro era essencial.
O ponto ideal para a finalização do doce assemelhava-se ao do doce de goiaba em pasta.
Alcançando esse ponto, o doce finalmente podia ser armazenado em latas ou potes de vidro.


ANEXOS

ANEXOS – Receitas e Trechos de Livros

Receita de Bolo de Milho – Açúcar. p.103 – Gilberto Freyre
Escolhem-se 12 espigas de milho maduro: rala-se o milho e em seguida passa-se numa peneira de arame. Faz-se um angu da massa com o leite de 1 coco ( tirado com água ), 1 colher ( 50g ) de manteiga, um pouco de erva-doce e açúcar a gosto. Feito isto põe-se o angu numa caçarola e leva-se ao forno para cozinhar. Depois de cozido deixa-se esfriar na mesma caçarola. Quando estiver frio batem-se 4 ovos como para pão-de-ló e mistura-se ao angu. Em seguida põe-se o bolo numa fôrma untada com manteiga deitando-se por cima 1 colher de leite de coco puro. Leva-se ao forno quente para assar.

Receita de Doce de Goiaba em Calda – Açúcar. p.134 – Gilberto Freyre
Escolhem-se goiabas boas e maduras. Descascam-se. Parte-se cada uma ao meio com uma faca. Tira-se o miolo com o cabo de uma colher e metem-se então as goiabas dentro d’água e junta-se a calda. Leva-se ao fogo numa caçarola deixando-se cozinhar até que as goiabas fiquem macias. O ponto de calda pode ser de pasta ou fio brando, conforme o gosto.

Açúcar, Gilberto Freyre
Açúcar, Gilberto Freyre – Primeira Edição

Receita de Pão-de-Ló de Leite – Mini Culinária de Dona Zizi. p. 215
4 ovos
1 xícara (chá) de açúcar
1 xícara (chá) de leite quente
2 xícaras (chá) de farinha de trigo
1 colher (sopa) rasa de fermento em pó

Bata as claras em neve, junte as gemas e o açúcar aos poucos, sempre batendo. Adicione o leite e bata mais um pouco. Quando a massa estiver bem fofa, peneire por cima a farinha e o fermento, misturando levemente sem bater. Asse em assadeira número 3 untada e enfarinhada, em forno médio (175 graus) por cerca de 30 minutos. Rendimento: 25-30 pedaços.

Trecho do livro A Saga do Açúcar de Fátima Quintas que menciona o Pão de Ló – p.183
“SIRVA-SE DO PÃO DE LÓ QUE FOI ELA QUEM FEZ”
Um dos mais antigos bolos na história da doçaria e, certamente, o mais antigo em Portugal, foi o pão de ló, um clássico; também um dos primeiros trazido pelo português para o banquete brasileiro. Servido como sobremesa – que sobremesa! –, e igualmente ofertado aos convalescentes. Considerado o mais histórico dos bolos caseiros no que se refere à tradição.
Importante salientar: o pão de ló manteve-se europeu em ambiente tropical americano, sem adequação da receita, tal qual o original, genuíno na sua maneira de fazer – inadaptável à farinha de mandioca, fiel aos ingredientes de sua composição, ovos, farinha de trigo, açúcar; jamais declinou da sua majestade.

Receitas de Bolo de Macaxeira
Fátima Quintas – A Saga do Açúcar, p.276 e p.282

A Saga do Açúcar, Fátima Quintas
A Saga do Açúcar, Fátima Quintas

RECEITAS TRADICIONAIS PERNAMBUCANAS DE TECA DA COSTA PINTO

BOLO DE MACAXEIRA
1kg de macaxeira, descascada, lavada e ralada; 1 coco grande ralado; 4 ovos inteiros; 2 colheres de sopa de manteiga; 800g de açúcar refinado; 1 colher de café de sal.

Modo de preparar
Rale a macaxeira, rale ou raspe o coco fininho. Misture bastante. Bata os ovos inteiros,misturando sempre. Acrescente o sal. Com o açúcar faça uma calda com 2 xícaras de água. Quando a calda estiver em ponto grosso, sem deixar esfriar, apague o fogo e coloque a manteiga. Assim que a manteiga derreter, ainda com a calda quente, misture com a macaxeira, o coco, os ovos e o sal. Em seguida aos poucos, passe tudo no liquidificador para ficar como uma pasta grossa. Depois asse em fôrma funda, untada de manteiga e polvilhada de farinha de trigo. Forno quente por mais ou menos 1 hora.

BOLO DE MACAXEIRA (NÚMERO 2 – RECEITA ANTIGA E SECULAR)
1 xícara de manteiga; 2 xícaras de açúcar refinado; 3 ovos inteiros; 1 coco grande retirado o leite sem água; 1k de macaxeira ralada, espremida e peneirada; 1 colher de café de sal.

Modo de preparar
Bata a manteiga com o açúcar até ficar um creme leve. Depois coloque as gemas peneiradas. Bata bastante. Em seguida, acrescente a macaxeira que deve estar pronta, o leite de coco e, por último, as claras batidas em neve. Misture tudo e leve para assar em fôrma untada de manteiga e polvilhada de farinha de trigo. Forno quente por mais ou menos 1 hora. É uma delícia esse bolo do tempo das nossas avós. Hoje dificilmente se faz.

Trecho do livro Açúcar de Gilberto Freyre, 5.ed, p.60
Na fase de transição do doce feito em casa para o industrializado – continuando a ser regional e tradicional, em vez de imitado do estrangeiro –, fase que o Nordeste há anos atravessa, já tendo na indústria anglo-recifense dos biscoitos Pilar uma indústria pioneira, nesse setor, e outra, na goiabada Peixe, podem animar aos nordestinos exemplos de grandes triunfos como os que nos chegam da atual Espanha.

Artigo inicialmente publicado em: https://www.colunawebgourmet.com/

Bolo Luiz Felipe, São João do Tauape, Fortaleza, CE. Foto: Teresinha Sampaio.

Luiz Felipe, uma joia da cozinha de engenho

Vem de um engenho de cana-de-açúcar das antigas terras de Jaboatão um icônico bolo de queijo, que é a mais perfeita conjunção entre o doce e o salgado. Trata-se do fabuloso Bolo Luiz Felipe*, uma joia da culinária da Zona da Mata de Pernambuco, batizado em homenagem a um político pernambucano do século XIX, Luiz Felipe de Souza Leão, senhor dos engenhos Tapera e Santo Inácio.

Tabuleiro de japonês, no bairro da Várzea, Recife, PE. Foto: Jacqueline França

Japonês, a cozinha do açúcar anda pelas ruas

Texto de Josué Francisco da Silva Júnior

O japonês é um famoso doce de tabuleiro e o ofício da sua venda é um elo sem igual das cozinhas com as ruas. Faz parte da memória afetiva dos pernambucanos e, particularmente, me traz muitas lembranças do tempo de criança.

De imediato, me recorda meu sobrinho João e sempre associo o pregão das ruas do Recife à sua infância na Rua do Cupim, no bucólico bairro das Graças, hoje em dia nem tão bucólico assim. Lembro que quando o vendedor passava com seu tabuleiro gritando “Japonêeeeeis!”, ele corria para a sacada do apartamento numa alegria que só vendo e passava o dia imitando o pregoeiro que acenava da calçada.

Não sei a origem do nome “japonês” no Recife e na Zona da Mata pernambucana e penso que não tem ligação com o Japão, visto que os doces nipônicos não têm tanto açúcar como os nossos.

É popular em muitas localidades do Nordeste do Brasil sob outras denominações, como quebra-queixo por exemplo, embora em Pernambuco esse nome seja usado exclusivamente para o doce de coco.

O quebra-queixo, que sempre reinou absoluto no tabuleiro, na verdade, é um doce duro de coco queimado que amolece à medida que vai sendo mastigado, grudando na boca com facilidade. Sim, é preciso ter cuidado com os dentes frágeis, pois o seu nome já denuncia.

O quebra-queixo pode ser tão duro que é vendido, em outros estabelecimentos, na forma de confeito (bala) embrulhado em papel de seda.

Originalmente, no tabuleiro de japonês não havia a diversidade que se tem visto ultimamente. Era apenas o quebra-queixo de coco e mais os doces de coco-branco, de coco em pedaços, de batata-doce e de amendoim, os campeões de venda. Hoje em dia, pode-se encontrar de goiaba, de banana, de mamão, de abacaxi, de castanha-de-caju, embora o coco marcantemente faça parte dos ingredientes da maioria deles.


Tabuleiro de quebra-queixo em Garanhuns, PE. Foto: Carla Denise Cumarú da Silva
Tabuleiro de japonês, no bairro da Várzea, Recife, PE. Foto: Jacqueline França

O japonês é a cozinha do açúcar que se movimenta, levando cheiros e carregando sabores, do mesmo jeito que acontecia com a tábua de pirulitos, o puxa-puxa, o alfenim, as cocadas, o cavaquinho, o mel de engenho e a emblemática bolinha de cambará, que infelizmente não alcancei.

O doce é vendido em um pedacinho de papel marrom à semelhança do antigo papel de embrulhar pão, embora hoje também seja vendido em papel branco e até saquinhos de plástico. O vendedor pode estar a pé com o tabuleiro na cabeça em cima de uma rodilha de pano, de bicicleta ou mesmo parado com o tabuleiro sobre um suporte de madeira num ponto de muito movimento, como no centro da cidade, feiras ou nas estações de ônibus. Pode-se escolher, ao gosto do freguês, mais de um sabor (metade e metade) no mesmo pedaço de papel.

O apito ou uma espécie de gaita usados junto com o pregão “Doce japonêees! Ói o doce, ó!” servem para anunciar ao comprador que ele deve se apressar porque o doce está passando na porta. Só deve-se tomar o cuidado de diferenciar o apito e o tabuleiro do vendedor de japonês, pois guardam semelhanças com os da venda de cuscuz, outro ofício encarregado de transportar a cozinha pela cidade.

E, por fim, é imprescindível ter água por perto para aplacar a fúria da boca depois de receber tanto açúcar, porque esse doce combina, de verdade, é com água.

Alfenin - Museu do Açúcar e Doce (MAD)

Alfenin, um doce brinquedo

Alfenim. Que saudade que eu tenho desse doce! Pra mim era muito mais que um doce, era um doce brinquedo!

Texto de Angelo Medeiros e Graça França

Lembro quando ia para a feira das Rocas com o meu pai, e ficava encantada com a banca que vendia alfenins: doces branquinhos em forma de bonecos, flores, cachimbos, chupetas…todos contornados de vermelho. Eu tinha uma coleção deles, mas a coleção durava pouco pois criança alguma resiste muito tempo diante de um alfenim – o doce crocante que desmancha na boca! Infelizmente as gerações mais novas não conhecem o alfenim, que praticamente  deixou de fazer parte da nossa gastronomia e da infância de muitos jovens de hoje em dia.

Herança do tradicional doce de tabuleiro do Brasil colônia, o alfenim é um doce delicado e frágil, de cor branca, que se apresenta em formas esculpidas de bonecos, animais, flores e tudo mais que a imaginação criar. A história do Alfenim começa com os árabes, passa pelos portugueses e chega ao Brasil onde adquire forte significado cultural no nordeste brasileiro.

Em 1939 Gilberto Freyre, escrevia no seu livro Açúcar “… Os doces com feitio de homem e de animal, sempre muito encontrados nas feiras portuguesas, e dos quais Leite de Vasconcelos já escreveu que parecem “relacionar-se com antigas formas cultuais” comunicaram-se ao Brasil, sobrevivendo nos mata-fomes de tabuleiro e nos alfenins. Os mata-fomes em forma de cavalo, camelo, camaleão, homem ou mané-gostoso; os alfenins, em formas também de homem, menina, galinha, galinha chocando, pombinhos, cavalo. Doces hoje raros mas que ainda se encontram no Nordeste…”

Para Câmara Cascudo “Alfenim: alfenie, do árabe, valendo o alvo, o branco. Massa de açúcar branco, uma das  gulodices orientais. Em Portugal, já era popularíssima em fins do século XV e princípios de XVI. Citado em Gil Vicente, Jorge Ferreira e Antônio Prestes. Era um doce fino, sem as complicações portuguesas e brasileiras, onde tomou formas humanas, de animais, flores, objetos de uso, vasos, cachimbos, estrelas. Sempre com pequenos desenhos vermelhos. É açúcar e água, apenas. Passa-se goma nas mãos na hora de puxar o fio no ponto do alfenim. De sua fragilidade e mimo restou a comparação melindroso como alfenim. Pertenceu a doçaria dos conventos, ofertado nos outeiros e nas festas de recebimento nas grades nos abadessados portugueses no século XVIII”.

RECEITA DE ALFENIM

“Desde a madrugada estava acordada, mexendo a calda de açúcar, acrescentando-lhe dedal de vinagre da receita. Agora os alfenins, já prontos, secavam em seu tabuleiro, no parapeito da janela da cozinha. Fui ver aquelas cândidas figurinhas: lírios de pétalas frágeis, pombinhos unidos pelo bico, corações entrelaçados…. Loucos por doces, João sentava num tamborete ao lado do fogão e ajudava a fazer o puxa-puxa. Os fios brancos se esticavam entre suas mãos, de uma palma a outra – clara sanfona.  Ele mesmo ficava com cheiro de calda queimada”!

( Heloneida Studart no livro “O pardal é um pássaro azul!”)

INGREDIENTES

5 kilos de açúcar

1 litro de água

1 colher de café de clara em neve

1 colher de chá de limão

MODO DE FAZER

Primeira Etapa: Calda Base

Misturar bem o açúcar, a água e a clara. Levar ao fogo sem mexer e quando começar a ferver retirar a espuma para limpar a calda. Acrescentar o limão, ferver mais um minuto, borrifar um pouco de água pela superfície da calda, desligar o fogo e reservar.

Segunda Etapa: Testar o Ponto de Moldagem

Quando esfriar, retirar a crosta de açúcar que se formou na superfície da calda. Em seguida, vai tirando porções de calda aos poucos e levando ao fogo para dar o ponto de moldagem, que se testa na água fria. Estende-se a calda no mármore molhado, espera esfriar uns poucos segundos, solta as bordas com uma espátula.

Terceira Etapa: Puxa-Puxa

Quando a calda chegar ao ponto de temperatura possível para ser manuseada, ela é puxada e repuxada, até o ponto ideal para moldagem.

Última Etapa: Moldar as Figuras

A última etapa é a moldagem das figuras, usando goma para refrescar a mão e evitar queimaduras. Nesta fase a imaginação e a habilidade para moldar é que fazem toda a diferença.

Projeto Resgate do Alfenim no Rio Grande do Norte

Os chefs Graça França e Angelo Medeiros quando estudantes de gastronomia na UnP, caíram em campo para fazer um trabalho de faculdade a fim de resgatar o delicioso doce feito de açúcar. O trabalho acabou se tornando um projeto sobre “a extinção e o resgate do alfenim”. Segundo Graça, que também é jornalista, foi preciso um árduo trabalho de garimpagem e pesquisa in loco para saber por onde anda o alfenim no estado. A dupla tentou trazer o doce novamente às vitrines natalenses, mas os problemas práticos de fornecimento não deixaram a coisa ir pra frente. Mesmo assim o projeto repercutiu fora do estado, com a participação dos dois no “Mesa Tendências” um Congresso Internacional de Gastronomia organizado pelo SENAC/SP e a revista Prazeres da mesa.

Alfenins de Dona Terezinha – Assu – RN

Na fase de pesquisa do projeto, Graça localizou na cidade de Assu, a única doceira da cidade ainda em plena atividade no ramo. Dona Terezinha ou Tetê dos alfenins ainda trabalha  preservando a receita original, utilizando polvilho nas mãos, na hora da modelagem. Faz isso desde criança. Sua produção é toda caseira, que ela comanda junto às mulheres da família. Ultimamente Terezinha produz apenas sob encomenda, por ocasiões de quermesses, festas juninas e eventos religiosos no interior do estado. Seus alfenins podem ser encontrados em Natal durante a Festa do Boi.

ASSISTA

Vídeo sobre a produção do Alfenim na cidade do Assu-RN, durante a realização do projeto para o resgate do doce no estado.

FONTES
Gilberto Freyre – “Açúcar, uma sociologia do doce com receitas de bolos e doces    do Brasil”
Luis da Câmara Cascudo -“Superstição no Brasil- Cap. Doces de Tabuleiro”.
Maria Marluce Gomes -“História da gastronomia do Rio Grande do Norte”
Jornal Tribuna do Norte-Natal/RN -Caderno Fim de Semana -Matéria super especial sobre sabores em extinção “Ausentes na Mesa”
Diário de Natal -Muito-Edição de Domingo:Gastronomia: Sabor doce e delicado, por Jussara Freire.
Graça França e Angelo Medeiros -Projeto resgate do Alfenim no RN.

FOTOS
Imagens Google
Jornal Tribuna do Norte
Jornal Diário de Natal
Arquivos do Projeto de Resgate do Alfenim de Graça França e Angelo Medeiros.

Publicado originalmente no Blog VENTO NORDESTE em 6 de outubro de 2011.

Vento Nordeste é um blog Nostálgico. Aqui cada postagem tem um pouco da minha vivência no Nordeste, em particular, na minha cidade Natal. Que o Vento Nordeste lhe traga boas recordações dessa terra de tantos encantos, de cultura tão rica e diversificada, desse povo tão amável e acolhedor.

https://papjerimum.blogspot.com/2011/10/sabor-saudade-alfenim-um-doce-brinquedo.html

Museu do Açúcar e Doce destaque do mês

Farófia, farofa ou para ampliar os entendimentos sobre os sabores

Sem dúvida, um dos processos culinários mais referentes e construtores de identidades alimentares do brasileiro está nas receitas das farofas. Farofas salgadas e doces.

Eu quero aqui, e agora, olhar para os preparos doces, geralmente complementares da panificação e da confeitaria, tendo no açúcar as suas mais diversas interpretações e tendências estéticas, onde há o seu protagonismo e uma referência que constrói receitas e identidades.

Nestes contextos, quero problematizar um preparo muito tradicional do mundo português, que tem a sua ampla e diversa doçaria portuguesa marcada pelo aproveitamento integral dos ingredientes, e que mostra que é antiga e tradicional a sua interpretação de sustentabilidade dentro dos seus hábitos alimentares. E é a partir de um ingrediente icônico, que é o ovo, um ingrediente verdadeiramente dominante, na diversa e rica doçaria portuguesa, nas muitas interpretações de receitas.

Destaque para o aproveitamento das claras, visto que há uma tendência marcante do uso das gemas na sua doçaria. Trago como exemplo notável a receita da farófia, cuja base são as claras de ovos batidas em neve, em castelo; além de açúcar e leite, e outros ingredientes que irão variar conforme as muitas assinaturas autorais.

Nas minhas etnografias em Portugal, perguntei por que o nome farófia, e as respostas foram imediatas e consensuais, é porque o doce é fofo. Assim, com esta indicação tão fundamental fiquei a questionar, porque é sempre muito bom questionar, ou relativizar certezas, de que a nossa tão consagrada farofa, nas suas versões mais tradicionais e comuns, a partir da farinha de mandioca, é também, sem dúvida, uma comida fofa.

Bem, fica então esta constatação da pesquisa de campo, insubstituível, fundamental, porque acompanha e retrata as mais profundas relações sociais, sempre simbolizados e encharcadas de memória e de identidade; e ainda de sabedoria tradicional.

Então, vamos rever algumas certezas sobre a possível e sempre questionável origem das comidas, no caso da nossa tão celebrada e querida farofa.

 

RAUL LODY

Jetone, mais que um doce de carnaval - Museu do Açúcar e Doce

Jetone, mais que um doce de carnaval

texto e foto de Josué Francisco da Silva Júnior

Ao som dos violões
A mocidade alegre sempre a cantar
A nossa canção que faz o coração
Sentir uma vontade de chorar
Ao relembrar os velhos carnavais
Que não voltarão jamais.
(Fragmento da marcha-de-bloco “Recordar é Viver”, de Edgard Moraes)

Uma parte do Carnaval brasileiro tem origem na folia europeia, sobretudo no Carnaval de Veneza com seus personagens da Commedia dell’Arte, nos salões de Paris e em festas portuguesas. No encalço também estão os acessórios usados na festa, como o confete (do italiano confetto) e a serpentina francesa. Muitas tradições carnavalescas perduram tanto na Europa quanto no Brasil. Aqui, a festa leva às últimas consequências a homenagem a Baco e as bebidas são o elixir dos foliões. Mas há comida de Carnaval no Nordeste, como os caldos, sururu, pirões, feijoada, dobradinha, chambaril para dar sustância e, incrivelmente, há doces! Em Pernambuco, os filhoses de origem portuguesa são os mais famosos, também a goiabada para confrontar o bate-bate de maracujá. Mas existe um doce originário da rica culinária carnavalesca italiana, particularmente popular em Gênova, cuja tradição alguns pernambucanos ainda insistem em manter viva: os jetones.

Não há mais jetones coloridos
Nem fantasias de sultões ou espanholas
Tanta coisa me traz saudade
Dos carnavais em minha mocidade
(Fragmento da marcha-de-bloco “Velhas Batalhas”, Arnaldo Paes de Andrade)

Jeton ou jetone, aportuguesado do italiano gettone (gettoni no plural), é um doce dos carnavais românticos do passado e que, hoje em dia, está quase extinto do cotidiano momesco, pelo menos no Brasil. Os jetones pertencem ao mesmo universo dos confetes e serpentinas, do banho de cheiro e do lança-perfume. Também ao saudosismo das marchas-de-bloco, aos bailes carnavalescos, aos corsos e aos blocos líricos pernambucanos. Consiste em um doce caramelado enrolado em papel laminado ou papel de seda colorido, podendo-se usar ainda papel crepom de diferentes cores, de modo que, ao ser embrulhado, forme uma longa cauda de tiras desfiadas. Hoje em dia, se usa qualquer doce, confeito, bala de leite e até brigadeiro para quem quer caprichar. Uma delícia e ao mesmo tempo uma injeção inesperada de açúcar para garantir energia aos foliões. Era item importante da arrumação para o Carnaval, assim como a confecção da fantasia e a compra de apetrechos.

Jetone, mais que um doce de carnaval - Museu do Açúcar e Doce
Foto de Josué Francisco da Silva Júnior

Antes usado à semelhança das famosas batalhas de flores e confete, não é apenas um doce, mas uma gentileza que não se encontra mais, desde a sua feitura caseira à linda encenação final de atirar às pessoas. No Recife, os jetones também eram vendidos nas casas elegantes do Centro da cidade. A pesquisadora Cláudia Lima, em seu Vocabulário do Carnaval Brasileiro, afirma que os jetones com fitas coloridas de papel de seda eram arremessados como se fossem petecas. Na Itália, o costume de arremessar doces nos desfiles e paradas acontece não apenas no Carnaval, mas também no Dia de Reis (Epifania), assim como na Espanha.

Vai sair meu bloco
Com máscaras, fitas, confetes, jetons, serpentinas
Alegorias
Meu povo cantando e frevando, tudo é fantasia.
(Fragmento da marcha-de-bloco “Alegorias”, de Cláudio Almeida e Humberto Vieira)

Ainda visto nas décadas de 1970 e 1980, nos desfiles da Troça Pitombeira dos Quatro Cantos, do Clube Elefante e do Bloco da Saudade, em Olinda, o hábito de arremessar jetones tem caído no esquecimento. No entanto, algumas agremiações recifenses têm persistido na tradição e, com sorte, podemos nos deparar com esse costume nos desfiles e apresentações do Bloco das Flores, Confete e Serpentina, Um Bloco em Poesia e Cordas e Retalhos. Um vínculo com os carnavais de Edgard Moraes, Capiba e Nelson Ferreira que alguns foliões recifenses procuram manter a muito custo.


Josué Francisco da Silva Junior
Pesquisador/Curador – Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais
Unidade de Execução de Pesquisa e Desenvolvimento de Recife
Embrapa Tabuleiros Costeiros
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
Recife, PE

O Doce Popular Egipciense

Fotos e texto: Eduardo Gazal

Em Pernambuco, antes da gourmetização dos doces, existiam as delícias das casas grandes e os doces populares, vendidos e consumidos nas feiras, mercados e calçadas.

A rapadura e outros doces da mesma linhagem são fabricados artesanalmente em épocas de abundância da cana-de-açúcar. Estoques são providenciados durante os períodos de moagem da gramínea, prática que permanece viva, principalmente, em regiões do Agreste e Sertão do Estado.

Exemplo: na cidade de São José do Egito, no Sertão do Pajeú, aparece o Doce Popular Egipciense. Uma rapadura que recebe polpa de frutas ou raspas e massa de coco. Pode ser chamada também de rapadura temperada. O doce que tratamos foi comprado na cidade de Tuparetama e custou, em setembro do ano de 2023, a quantia de R$ 3,50. Preço modesto para a quantidade de produto e a qualidade da guloseima.

Da imensa ementa da doçaria de Pernambuco, a partir do caldo de cana, fabricamos o mel de engenho, os melados e a rapadura.

Para melhor entendimento da nomenclatura oficial e dos nomes populares, vamos acrescentar trechos do livro “Doce Pernambuco”, do antropólogo e historiador da gastronomia Raul Lody.

Doce Pernambuco
Capa do livro Doce Pernambuco, Raul Lody

No capítulo denominado ‘Doce Vocabulário’ encontramos informações valiosas, a saber:

Mel de Cana – nome tradicional para o caldo de cana.

Melaço – tipo de mel; também conhecido como o mel final.

Melado Coalho – rapadura.

Rapadura – produto fabricado em engenho banguê. O caldo da cana não é purgado, assim conserva todos os sabores originais. Na forma de madeira, o caldo de cana é solidificado e adquire formato retangular, popularmente chamado de ‘tijolo’. É, ainda, marcado para identificar a procedência. Muitas rapaduras são embaladas em folha de bananeira.

Pernambuco é de açúcar

Texto e fotos por Josué Francisco da Silva Júnior

Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br

 

Açúcar vem do sânscrito, mas foram os árabes que nos legaram as-sukkar, como foram eles também que nos transmitiram ár-raçif para nominar o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco, fundado no século XVI, sob a proteção de Santelmo, o santo dos marinheiros.

Independentemente das coincidências nas raízes linguísticas, foi aqui que, há quase 500 anos, teve origem sobre os massapês da Zona da Mata uma avançada “civilização do açúcar”, forjada na mão de obra de negros escravizados sob a dominação da elite branca da época.

Em Pernambuco, é quase heresia se fazer dieta de açúcar, já que, desde tempos imemoriais, a economia do Estado foi alicerçada sobre o produto. Foi a amálgama que edificou Olinda e a transformou, do alto das suas colinas à beira-mar, numa pequena Lisboa dos trópicos. Era o “ouro branco” cobiçado pelos ingleses no Saque do Recife, em 1595 e, no século seguinte, pelos holandeses da Companhia das Índias.

Até a paisagem do Recife não seria a mesma sem o açúcar. Basta olhar as gravuras ou as fotografias que surgiram a partir do Oitocentos para se ver o enxame de navios, barcas e alvarengas nos rios e cais da cidade carregados de sacas do produto, marca registrada que perdurou até pouco tempo atrás.

Embora socialmente injusta e “amarga”, a lavoura da cana-de-açúcar, da qual muito já se falou para o bem e para o mal, deu origem a uma rica culinária constituída por doces bem elaborados e dezenas de bolos opulentos, como o Souza Leão, o Cavalcanti, o Guararapes ou o Luiz Felipe, para citar uns poucos. Aliás, os bolos pernambucanos vieram dos engenhos de açúcar e da ebulição das suas cozinhas, como bem representou o genial Cícero Dias, no seu Engenho Noruega. Têm nome, sobrenome, procedência e, antes mesmo de existir denominação de origem e identidade geográfica, já podiam ser rastreados. É bolo Souza Leão do Engenho São Bartolomeu, do Noruega ou ainda do Jundiá ou do Batateiras, somente para falar do mais famoso, do bolo símbolo da independência gastronômica brasileira, como disse Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, pesquisadora de gastronomia. O Souza Leão de hoje em dia está mais comedido, mas já foi exagerado: massa de mandioca peneirada várias vezes, leite de seis cocos, muito açúcar e manteiga e, pasmem, 18 gemas! Uma verdadeira revolução promovida pelas quituteiras da casa-grande, como não bastassem as tantas revoluções que aconteceram aqui. Essa rebeldia não se deu apenas com o Souza Leão, mas também com o Luiz Felipe, de mesma estirpe, com o seu indefectível ingrediente— o queijo-do-reino —, uma das mais bem-sucedidas explosões do dual doce/salgado.

 

Bolo Souza Leão - foto de Josué Francisco da SIlva Junior
Bolo Souza Leão – foto de Josué Francisco da SIlva Junior

 

Outros bolos icônicos merecem destaque, como o bolo-de-rolo e o bolo-de-noiva-pernambucano, diferentes de tudo no gênero. O primeiro é feito a partir de uma massa intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas, com cuidado para que o doce não ultrapasse a massa. Os puristas admitem apenas a goiabada como recheio e torcem o nariz para recheios surgidos recentemente, como doce de leite ou chocolate. E ai de quem disser a um pernambucano que bolo-de-rolo é rocambole! É quase uma declaração de guerra. Já o bolo-de-noiva-pernambucano possui massa densa e escura, proveniente da mistura de doce de ameixa, frutas cristalizadas, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho Moscatel ou Porto e especiarias, diferente dos bolos de casamento de massa clara do resto do país. Há quem coloque até queijo-do-reino e goiabada. E ainda é coberto por uma farta camada de glacê-mármore feito de açúcar-de-confeiteiro e limão. O bolo-de-noiva-pernambucano possui influência direta do Christmas Pudding britânico, como atesta o antropólogo Raul Lody. Não se imagina que uma iguaria tão complexa tenha sido herança de um povo cuja culinária não possui lá boa fama. Mas, sim, veio dos ingleses, cuja enorme colônia se fixou em Pernambuco a partir do século XIX, e deixou também o bolo-inglês, de constituição mais simples, porém não menos saboroso.

 

Bolo de noiva pernambucano - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Bolo de noiva pernambucano – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

Gilberto Freyre, sociólogo e autor do célebre Açúcar de 1939, afirmava que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, toucinho-do-céu, somente para mencionar alguns.

Em Pernambuco, não basta ser caldo de cana, tem que ser com pão-doce porque açúcar pouco é bobagem. Comida salgada tem que ter doce: pastel de carne moída aqui vira pastel-de-festa e com açúcar! Queijo de coalho come-se com mel de engenho. O que seria da cartola, a clássica sobremesa de banana Prata e queijo de manteiga, sem o açúcar abundantemente polvilhado por cima com canela?

Andar pelas ruas do Recife é ter os ouvidos adoçados pelos pregões “Japonêêêêês!” vindo do vendedor do mais famoso dentre os doces de tabuleiro; ou “Mé nôôôôvo de ingeeeeem!”, do vendedor de mel de engenho na lata, ofício que se perdeu no tempo para sempre. E os doces populares? cocada, pixaim, sambongo, entre muitos outros trazem a grife africana, como toda a cozinha dos engenhos. Ainda hoje, uma volta nas feiras livres pode-se, com sorte, esbarrar numa banca de doces com os incomparáveis quebra-queixos ou chupar cana pura cortada em roletes enfiados em talas de bambu. Sabores de infância que quase não se veem mais.

 

Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…
(Trem das Alagoas, Ascenso Ferreira)

 

…já dizia o gigante Ascenso Ferreira no trajeto de trem pela Mata Sul Pernambucana. Diga-se de passagem que Ascenso junto com João Cabral de Melo Neto foram os poetas que melhor traduziram os canaviais numa verdadeira sociologia em forma de versos.

 

Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
(O Vento no Canavial, João Cabral de Melo Neto)

 

Bebida em Pernambuco vem da cana-de-açúcar e atende por nomes diversos: cachaça, aguardente, caninha ou pinga. Evidentemente, também é patrimônio estadual. E não sem razão, afinal aqui foi o seu primeiro centro produtor e hoje muitas marcas famosas saem dos alambiques distribuídos do Litoral ao Sertão. Sabia que a primeira cachaça industrializada do país foi a Monjopina, do Engenho Monjope, de Igarassu, em 1756? Um raro exemplar dela está lá no Museu da Cachaça, em Lagoa do Carro, a maior coleção do Nordeste, com mais de 12 mil marcas.

As mudas de cana chegaram com as caravelas, porém há certa controvérsia em torno do surgimento do primeiro engenho de açúcar, se em São Vicente ou na Ilha de Itamaracá, no entanto é indiscutível que uma das usinas mais antigas em funcionamento no Brasil é de Pernambuco — a Petribu — moendo desde 1729, quando ainda era engenho. É dela o primeiro açúcar demerara comercializado no país (demerara é aquele açúcar grosso com gosto de melaço, cujo nome se originou da região do mesmo nome na nossa vizinha Guiana). E falando em produtos de engenhos, “rapadura é doce, mas não é mole não!” Vem do Sertão a melhor. Sertanejo que se preza come com farinha para dar sustância. Duas cidades brigam pelo título de Capital da Rapadura do estado, Santa Cruz da Baixa Verde e Triunfo, ambas com seus canaviais espalhados pela Serra da Baixa Verde.

Açúcar e frutas nativas andam de mãos dadas. Caju, umbu, ubaia, pitanga, guabiraba e muitas outras podem ser comidas frescas, mas têm que virar doces, licores e compotas, “tudo à moda de Pernambuco”. Caju é doce de praia, feito em calda ou em passa, antigamente colocada para secar nos telhados das casas de pescadores. Umbu ou imbu, como se diz no interior da região, é doce sertanejo e a fruta dá até uma bebida, a saborosa umbuzada feita com leite. Da guabiraba, frutinha parente do araçá e cada vez mais rara na Zona da Mata, se faz o doce símbolo de Paudalho e que só se come uma vez no ano, por conta da safra curta. Tem até doces de Carnaval, uma das nossas festas mais afamadas, que o digam os filhoses de calda translúcida e os jetones coloridos.

Lembrando de festas, o São João é o palco principal de todos os bolos, doces e afins pernambucanos: canjica, munguzá, manuê, bolo de macaxeira, bolos de milho de todos os jeitos, arroz-doce e mais uma infinidade de guloseimas. Um parêntese deve aqui ser aberto para reverenciar o inigualável Pé-de-moleque pernambucano (há outros bolos e doces diferentes com esse mesmo nome Brasil afora), um bolo escuro de massa de mandioca no qual se adicionam café, castanha-de-caju, erva-doce, canela e cravo-da-índia como ingredientes. É o rei das mesas do mês de junho e já impressiona pela cor. E pensar que a elite imperial não apreciava porque era comida de escravizados!

 

Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior
Macaxeira- foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

No Agreste, a cidade de Pesqueira floresceu com a indústria de doces, dando origem a um polo doceiro famoso que se espraiou pelos Vales dos Rios Moxotó e Pajeú. Em Pesqueira, há ainda o Museu do Doce, instalado no prédio da antiga Fábrica de Doces Rosa. Também Bezerros, com suas dezenas de pequenas fábricas de nego-bom de banana e mariola de goiaba, frutas vindas dos brejos de altitude, as regiões de microclimas singulares do Semiárido. A vila de Poço Fundo, em Santa Cruz do Capibaribe, merece destaque pelos doces que são patrimônio do município e que deu origem a um festival bem conhecido na região. Já no Alto Sertão do São Francisco, a bacia leiteira de Afrânio ganhou notoriedade pela fabricação de um doce de leite branco especial comercializado em barra, um sucesso até no vizinho Piauí.

O açúcar também faz parte da história de vida das mulheres pernambucanas desde sempre, como Dona Menininha, doceira de Agrestina, que é patrimônio vivo de Pernambuco. Sabem por quê? É a rainha única do alfenim (de al-fanid, novamente os nossos árabes…), o doce que toma forma de tudo o que a imaginação pode proporcionar. Dona Ceci Araújo e sua família guardam a sete chaves a receita do doce de laranja-da-terra, que fez a fama da bela e fria Triunfo. Segredos também são guardados pelas boleiras tradicionais do Recife, cujas receitas estão nas famílias há gerações. Dona Fernanda Dias comanda a mais conhecida confeitaria da capital pernambucana e produz iguarias exemplares, como o bolo-de-rolo mais perfeito da cidade, hoje espalhado por todo o Brasil. As filhas de Dona Leoni Asfora, Jane e Eliane, são responsáveis pela manutenção da qualidade de um dos bolos-de-noiva mais desejados do Recife, cuja receita herdaram da sua talentosa mãe. Ainda bem que existem as filhas e netas preocupadas em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, que o digam Dona Rita Pereira e sua família, que heroicamente resistem na busca das guabirabas pelas chãs dos tabuleiros de Paudalho, para a feitura do raro e excepcional doce.

 

Cartola - foto de Josué Francisco da Silva Junior
Cartola – foto de Josué Francisco da Silva Junior

 

O açúcar em Pernambuco está entranhado não apenas na gastronomia e nos bens patrimoniais e culturais, mas muito além disso, está profundamente enraizado na formação do seu povo, na sua economia e na influência que o Estado teve sobre toda a Região ao longo dos séculos. “Sem o açúcar… não se compreende o homem do Nordeste”, resumiu sabiamente Gilberto Freyre.

 

VEJA NOSSA GALERIA DE DOCES PERNAMBUCANOS

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Texto modificado e atualizado originalmente publicado em Comida com História (2022).

 

 

Doce ibéricos para o Natal - Museu do Açúcar e Doce

Docemente ibéricos para o Natal

Há um grande entendimento histórico sobre os doces relacionados às celebrações, pois o doce é também revelador de um processo culinário especial, que agrega uma valorização estética, uma produção autoral e/ou tradicional, e que atende diferentes calendários festivos.

E quando se aproximam as celebrações do Natal com um amplo ciclo de base cristã que culmina no dia dos Santos Reis Magos, em 6 de janeiro; e, assim, vivem-se cardápios memoriais e patrimoniais.

Sabemos que as receitas especiais para os cardápios das festas, neste nosso ambiente multicultural, são amplíssimas e têm como base a cozinha ibérica, e, em destaque, a cozinha portuguesa. Uma cozinha transcontinental que traz os sistemas alimentares, e muitos saberes culinários, do Ocidente e do Oriente.

Tudo isso está à mesa para marcar e revelar a doçura necessária nas manifestações das festas e da religiosidade. Dessa maneira, preserva-se memórias ancestrais e fundantes das muitas cozinhas regionais, e mesmo nacionais em âmbito brasileiro.

Além das tão celebradas rabanadas, fatias de parida ou fatias douradas, há muitos e diferentes bolos e tortas que seguem processos autorais, de criação e de expressão gastronómica regional.

Também para este rico acervo de doces, temos as roscas de reis ou o tão consagrado bolo-rei, que lembra uma coroa, remetendo-se as coroas dos três Reis Magos do Oriente. Um doce marcante nas cozinhas ibéricas, e crescentemente nas nossas celebrações de brasileiros.

Ainda, os filhóses, os coscorões, e outros “fritos” feitos à base de farinha de trigo e que podem ser recheados; que também estão nas nossas cozinhas, tão multiculturais e multiétnicas, destacadamente portuguesas. E nestes contextos dos fritos, quero trazer as azevias, verdadeiros pastéis recheados de doce de grão-de-bico, e por isso conhecidos como fritos de grãos. São muitos sabores, muitas referências, muitas memórias; e muitas criações doces para se viver a festa e a religiosidade à boca.

 

 

RAUL LODY