Texto e Fotos por Josué Francisco da Silva Júnior*
“Não sei se a América produz alguma fruta mais bela e gostosa”.
Assim começa a descrição do médico e naturalista Guilherme Piso sobre a mangaba na sua magnífica “Historia Naturalis Brasiliae”, obra-prima escrita com a colaboração de George Marcgraf. Foram eles os primeiros cientistas no Novo Mundo e vieram para Pernambuco na corte de Maurício de Nassau. A mangaba estava entre as frutas prediletas dos holandeses e, diga-se de passagem, foi também uma das primeiras a serem registradas pelos cronistas e viajantes ainda no século XVI.
…é coradinha que nem mangaba do areal. (Fragmento do romance Inocência, do Visconde de Taunay, 1872)
A árvore graciosa de copa chorona, companheira elegante do muricizeiro e do cajueiro nos tabuleiros do Nordeste, como bem disse o explorador alemão Robert Avé-Lallemant, produz frutos redondos ou ovais de diferentes tamanhos e de aroma e sabor únicos. A cor amarelo-esverdeada salpicada de encarnado completa a sua singularidade.
Quando não está totalmente madura a mangaba exsuda um “leite” que gruda nos lábios. Aliás, o verso tomado de empréstimo ao compositor João Santana para o título deste artigo revela lindamente esta característica. O nosso poeta maior João Cabral de Mello Neto também o fez de forma precisa no seu melhor estilo para os Jogos Frutais:
…Mangaba, deixas em quem te conhece visgo, borracha.
Vem da época pré-colombiana o consumo da mangaba ao natural pelos povos indígenas que habitavam o Brasil e que também nominaram a fruta. Mangaba quer dizer “coisa boa ou que serve para comer”, na língua tupi. Os índios também já fabricavam uma espécie de vinho a partir da mangaba, como relatou o Padre Fernão Cardim, ainda no início do período colonial.
A coleta da mangaba nativa nos tabuleiros e restingas do Nordeste, bem como todas as atividades relacionadas à fruta, são um trabalho quase que exclusivo das mulheres, conhecidas como “catadoras de mangaba”. Alguém já disse que mangaba é só pra quem sabe colher. Elas dividem o seu dia a dia entre a mangaba, o mangue, a casa e tudo o mais. Com conhecimentos repassados há gerações, ainda possuem um vocabulário particular cheio de palavras incomuns para a cata da fruta: capota, enfornar, abafemar, de baque, birrinho, baceira, venha-a-nós…
… mangaba, fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo… (Fragmento dos Diálogos da Grandeza do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, 1618)
Mangaba é fruta de verão, de praia, de sol, de areia. É quase um reclame turístico. Chupar mangaba madurinha “de queda” debaixo do pé é uma experiência que só viveciando para sentir. Misturada com farinha mata a fome do povo do litoral na roça ou na pescaria.
Olha é de capota, ou é de caída é adocicada, amadurecida… Boca de alto-falante bem de longe se escuta, com cesto na cabeça na praça ou na feira anuncia a fruta: Olha a mangaba! (Fragmento da canção Mangaba Madura, de Nino Karvan)
A venda da mangaba nas feiras e mercados, nas margens das estradas ou nas portas das casas é elemento obrigatório da paisagem alimentar de muitos lugares do litoral nordestino. O pregão do vendedor “Ô mangaba, ô mangaba… Mangaba, olha a mangaba!” soa nas ruas como o chamado de um muezim. No entanto, são os produtos confeccionados a partir do fruto os verdadeiros néctares e ambrosias do nosso trópico.
Uma das mais nobres frutas desta América é a mangaba, de que se faz rica conserva, bem estimada ainda fora da sua pátria… (Fragmento da obra Frutas do Brasil numa Nova e Ascética Monarquia Consagrada à Santíssima Senhora do Rosário, por Frei Antônio do Rosário, 1702)
Foi da mangaba um dos primeiros registros de uma fruta conservada em açúcar. Está lá no Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, de autoria de Gabriel Soares de Sousa. No tempo dos flamengos, a conserva de mangaba foi usada pelos padres católicos para obter favores ou cair nas graças de Nassau. Numa ocasião, foram ofertados ao Conde quatro barris do extraordinário doce de calda translúcida.
Sorvete, é de mangaba! (Pregão do Recife)
Gilberto Freyre afirmava que as chamadas “frutinhas do mato”, como a mangaba, amadas pelo povo, também tiveram sua fase de esplendor à mesa patriarcal, servidas como doce, geleia ou sorvete. E ele recomendava em seu Pequeno Guia da Cidade do Recife: “a mangaba, o turista deve preferi-la sob a forma de refresco. Ou então de sorvete”. Para Josué de Castro, “o sorvete de mangaba goza, merecidamente, do melhor conceito: é saboroso”. E Jorge Amado deu um jeito de inserir esse ícone da mangaba no reencontro de Tieta com Chalita, no romance Tieta do Agreste: “Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de mangaba, Leonora não conhece…”
A globalização e a rapidez com que as mudanças nos hábitos alimentares foram acontecendo nos últimos anos fizeram com que novos produtos à base de mangaba também se multiplicassem nas cozinhas domésticas, indústrias alimentícias e restaurantes. O surgimento da polpa congelada nos anos 1980 contribuiu significativamente para a popularização da fruta. Antes, os sucos, doces, geleias, sorvetes e picolés dominavam a culinária mangabeira, assim como, em menor proporção, licores e passas. O uso do leite condensado ajudou no aparecimento dos pudins, mousses, cremes, bombons, tortas e uma infinidade de iguarias de mangaba.
Na Fazenda Rio Formoso… alentou-nos um excelente refresco feito com vinagre de mangaba… (Fragmento da obra Viagem pelo Brasil de 1817-1820, de Johann Baptist Spix e Carl Friedrich von Martius)
O refresco registrado pelos naturalistas Spix e Martius, nas suas expedições no século XIX, evoluiu para mixes de néctares e cervejas com blend da fruta já encontrados em grandes supermercados. Restaurantes e docerias sofisticadas de capitais e cidades litorâneas do Nordeste têm incluído no cardápio pratos mais elaborados, com o marcante sabor da mangaba, sendo possível agora encontrar camarão ao molho de mangaba, panacotta de mangaba ou torta chiffon de mangaba, para citar alguns. A mangaba entrou no maelström das cozinhas deixando a sua marca e trazendo toda a cultura a ela associada.
Apesar do incremento da mangaba no mercado, em muitos lugares do litoral nordestino, sobretudo em Pernambuco, o seu consumo se reveste de um saudosismo. A planta desapareceu das áreas naturais de ocorrência e a destruição desses remanescentes é uma realidade. As causas são várias e conhecidas e vão desde a expansão imobiliária à implantação de mono cultivos. Como reflexo, não se vê mais mangaba nos locais tradicionais de comercialização, perdendo-se vínculos importantes com os saberes relacionados à fruta. Infelizmente e em pouco tempo, restará apenas na memória popular e as novas gerações ficarão impedidas de conhecer esse sabor tão especial.
*AUTOR
Josué Francisco da Silva Júnior
Engenheiro agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br